Referência no samba e cria do morro do Turano Pipa Vieira fala de música, militância e da famosa roda de samba Time de Crioulo.
“Os filhos teus, não fogem à luta/ no estampido da nossa nação/ pela regência dessa batuta / a mão do ouro da nossa missão / da liberdade dos nossos sonhos / que vão nos trilhos de um novo amanhecer / quem sabe faz a sua hora, não espera acontecer.”
Movimento do trem -Pipa Vieira
Pipa Vieira é um carioca irreverente, nascido e criado no Morro do Turano,envolvido desde cedo no samba. Aos 6 anos de idade já se arriscava no tamborim, evidenciando o seu talento inato e prenunciando o brilhante músico que se tornaria.
Com toda a sua versatilidade transita na cena do samba carioca e comanda a famosa roda de Samba Time de Crioulo que acontece na tradicional feira da Glória.
AVF – Como você vê a diferença entre as composições dos sambas antigos e dessa nova geração do samba?
PV -Na verdade, não tem diferença. Quando criança a gente aprende a ouvir aqueles sambas, aquela linguagem, conhecemos aquelas figuras, aqueles atores, aqueles autores, aqueles personagens e isso serviu de inspiração para ser o que sou hoje. Gostar da música, procurar saber qual foi a inspiração do autor naquele momento e tentar aprender com aquele ensinamento. Hoje, na verdade, o samba da nova geração são esses ensinamentos. A forma de falar muda um pouco, mas a constituição melódica ainda é identificada como samba de raiz. Novo para esse momento, mas que daqui a pouco num futuro bem próximo ele pode se tornar velho, novo novamente e assim por diante.
AVF – Resgatar o samba de partido alto onde a mídia da visibilidade para o pagode é um desafio?
PV -O Partido Alto é um segmento do samba que para a galera que gosta de samba de raiz é o tipo de samba que tem um feedback imediato; ele é pergunta e resposta. A grande dificuldade, de repente, é estar de frente com esse romantismo que o pagode comercializa e acho que são temas muito parecidos, mas que todo mundo tem uma ideia que é especificamente diferente o que é dito ali, que é cantado/interpretado pelo cantor. O equilíbrio que a mídia dá para o pagode hoje vai mais pelo consumo e a grande quantidade de jovens que conhece o samba através do pagode e pode migrar para o samba de raiz, porque tem famílias que não tem essa tradição do samba de raiz assim. As pessoas acabam, quando gostam do samba e do pagode, procurando, pesquisando e consumindo outros tipos de samba também, porque a roda de samba não é só o pagode.
AVF- Na música Nossa Escola você faz referências aos grandes nomes do samba (Ivone Lara, Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Cartola, entre outros), qual a importância desses nomes na sua vida?
PV- Esse samba foi composto em parceria com mais cinco além de mim. Eu convivi muitos anos, antes de me tornar compositor, com esses compositores que também não eram compositores ainda com exceção do Ronaldo Camargo que já foi gravado pelo Fundo de Quintal, já foi gravado pelo Jorge Aragão (se eu não me engano), então já tem uma tradição, ele foi o cara que me norteou. O Vinicius Maia, que é um dos que eu mais transitei por sambas na cidade, chega com a conclusão do refrão na cabeça, e esse samba chega para mim através do Bom Cabelo na Glória, no primeiro lugar que eu fui morar na Glória. A grande importância desse samba é mostrar que hoje a escola de samba, do sambista carioca, que não concorre, que não se dedica totalmente ao samba enredo vive da roda de samba; faz do seu trabalho, seu ganha-pão na roda de samba. Tantos nomes que nos inspiraram e foram influência para poder me construir como compositor, como sambista, para ter uma carreira e poder levar o samba para outros estados e para fora do Brasil. Essa é a grande inspiração desse samba.
AVF – Dilemas e Moeda Motriz são músicas compostas com uma pegada mais reflexiva sobre a sociedade e o cotidiano, como compositor você consegue ir para todos os âmbitos, não só o samba de exaltação, como o público recebe essas composições?
PV -É uma característica que como compositor eu acredito que ficou muito mais latente no começo de toda essa história e quem clareou a minha mente foi o Inácio Rios. Nessa época, que eu passei bastante tempo com Inácio, também conheci outros compositores que tinham essa visão de falar sobre a questão social no samba em específico, e não é tão comum. Eu agradeço muito também ao Alessandro Monteiro, que alimenta ir além dentro de um tema desvendado pela parceria que você tem. Nós falamos que somos poetas da rua, porque transformamos um cotidiano, as coisas que saem do coração e da mente ou até de uma vivência do parceiro em música e Dilemas foi uma situação de vida em uma casa de show no Rio, durante uma cena agressiva, rude e de preconceito. Foi uma visão das pessoas que lá estavam e o que aquelas pessoas fizeram naquele momento. Elas não fizeram nada, e então saímos com essa cena latente no coração. Moeda Motriz está sendo regravada pelo Inácio Rios agora no novo disco e tem um arranjo muito bacana, um arranjo que mistura essa visão. O disco é produzido pelo Bira, que é um dos caras que movimentou a cena do pagode e revelou vários grupos.
AVF – O prefeito do Rio de Janeiro cortou pela metade a verba para o Carnaval da cidade. Como você vê a situação do samba na cidade e essa relação com o Carnaval e a prefeitura?
PV – Eu vejo como um recorte e um destaque distinto no que o tema propõe, eu vejo a prefeitura, na gestão do Eduardo Paes, um pouco mais próxima nessa questão do samba, na relação com a rede carioca das rodas de samba que foi fundada através do Instituto Eixo Rio, na figura do Marcelo do Gueto. Vejo que em algum momento essa galera ganhou um decreto e esse decreto foi fragmentado, foi dizimado, totalmente desrespeitado, com a gestão do Prefeito Crivella. Eu vejo um distanciamento dele com essa cultura de rodas de samba que só crescem no Rio de Janeiro, através do crescimento da demanda musical. Em 2017, havia uma pesquisa através da Rede Carioca das Rodas de Samba de um catálogo de mais de 200 rodas de samba em todo o estado do Rio e 40 rodas tinham uma cobertura da Rede Carioca das Rodas de Samba na realização, na parceria e no apoio. Com essa verba conseguimos dar cobertura para mais de 40 rodas de samba colocando a lona. A lona, o som, os banheiros químicos e umas outras pequenas coisas que dão a condição do sambista se estabelecer na rua, e que mesmo assim é muito frágil, porque se tem uma chuva no Rio de Janeiro, alaga tudo, engarrafa tudo e mesmo assim as rodas de samba sobrevivem.
Então a questão do prefeito, Marcelo Crivella, retrocede nessa autorização minimamente priorizando o que seria muito importante para esse momento, fora outros trâmites que não se tem o apoio da prefeitura e nem do Estado. Vemos então uma luz no fim do mundo com a Lei da gamarra que foi sancionada no município e no estado através do vereador Reimont e do deputado Minc. Não medimos esforços para que a luta continue e quem sabe possamos levar a lei até Brasília e calçar ali um suporte ao sambista.
O sambista hoje não é só um músico, ele é um empreendedor, ele é o cara que gera emprego, gera em cada roda de samba uma demanda de trabalho para expositores. Temos expositores que são do mobiliário, tem grupos de mulheres que fazem móveis com palhas, louças de barro, porta tempero etc.
AVF – Quantas pessoas estão envolvidas na sustentabilidade da Roda de Samba do Time de Crioulo? Como vocês conseguem se manter?
PV – A realização de um evento desses está em torno de 9 a 10 mil reais, porque a cerveja é consignação. E sem patrocínio fica complicado, porque colocamos esse evento sem ter um caixa. Qualquer imprevisto ou problema sai do nosso bolso e pensando nessa estrutura de salário, não tem um salário.
E essa movimentação tem um termômetro nas redes sociais. São 900 pessoas dentro dessa rotatividade, mas a rede social te dá, pelo menos, 4 mil pessoas envolvidas no evento. Dependemos diretamente da venda da cerveja e as barracas dos expositores e as pessoas que participam contribuindo para o fortalecimento do evento.
AVF – Você tem projeto para voltar para o Turano levando a música? Quando você pensa no que você viveu, de onde você saiu, de onde você está, quem é o Felipe do Turano e quem é o Felipe agora?
PV -Foi maravilhosa essa pergunta. Quando eu penso no primeiro disco, eu penso em resgatar muita coisa que eu aprendi com a minha família, fazendo homenagens. Então eu penso muito, dentro de toda essa modernidade que a gente vive, conhecendo outros arranjadores, conhecendo som fora do Brasil, conhecendo músicos fora do Brasil, a cada dia conhecendo outros músicos brasileiros que são maravilhosos, eu ainda penso em um dos caras que é expoente do meu lugar, produzindo meu disco. O nome dele é Marcelo Moraes e tivemos essa conversa em 2018 na criação da campanha do financiamento coletivo.
O título do disco é ‘O movimento do trem’ que é exatamente essa história da ligação da linha do tempo; o sambista que estava lá atrás, ele ser um expoente, ele estar vivo hoje e ele poder unir essas pontas da linha do tempo e eu poder trazer coisas que aprendi lá atrás e dessas coisas que aprendi dentro da linha do tempo para eu demonstrar as coisas que eu construí, que eu escrevi, os lugares que eu passei, as emoções que eu senti, tudo que ficou guardado dentro dessa trajetória.
E essa questão do Turano, não só o Marcelo – eu sou muito antenado na galera que hoje desenvolve a cultura no Turano -, porque eu também sou cria de uma escola de uma militante, o nome dela é Laura. Ela comandou na minha adolescência um centro de cultura que tem no Turano até hoje, ‘Fazendo Arte e Lazer’ se não me engano, e a gente chamava de Clubinho. Tinha cinema, tinha teatro, tinha muita coisa. Eu participei de um time de futebol lá, com 15 anos, disputando campeonato de favelas, com a organização dela, minha mãe também participou, enfim… E tem uma galera de lá que já está tocando muito bem, e eu sonho ter uma galera que grave comigo. Na verdade, que fica até faltando projeto para essa galera toda. Mas não esqueço ninguém e estou sempre por dentro na rede social, procurando ver quem fez parte.
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Matéria publicada no jornal A Voz da Favela edição de fevereiro de 2019