CRÔNICA | A motorista

Futuro pelo retrovisor - Foto: Leleco de Miranda

Qualquer temperatura amena no verão traz na estimada previsão de ânimo, a apatia. Há na inconsistência do clima, a incerteza. Um dia nem para abominar nem para celebrar, o que tornava o abismo entre ambos, imperceptível. Dias pálidos em pleno janeiro no Rio, deveriam ser proibidos por decreto. No arbítrio das nuvens insistentes, via imune as esperanças.

Como de hábito, apenas a rua poderia subverter esse estado de alma. Peguei a carteira, meu patuá, no pulso e no pescoço, me coloquei rumo aos becos do centro. Não aguardei três minutos à esquina, estava embarcado. Uma lâmina de plástico dividia os bancos da frente, sentei-me atrás. A máscara era exigida, a coloquei. A pandemia havia acelerado, é verdade. Absorvia os olhos da motorista no retrovisor, o rímel a tornava atraente, me deu bom dia. E, lá foi ela falar sobre o engarrafamento mais adiante.

Não é preciso revelar o lamentável tempo excessivo de trabalho com que esses motoristas conseguem fazer algum dinheiro. Muitos viravam noites inteiras. Mais um pouco, uns detalhes surgiam. O vestido preto. Mescla de candura e audácia. Saltos a sua direita, bem aos pés da poltrona ao lado, junto a uma bolsa jogada ao chão. Foi quando o sinal fechou e ela bem achou conveniente pegá-la. Dobrou-se, inclinada porém, por uns segundos, as costas nuas, alardearam os sentidos. Contemplava. Recolhi qualquer insinuação. Concentrei. Tranquei-me num pedaço de papel. E só a ele olhei, lendo e relendo um poema antigo, que tinha no bolso.

Assim, dizia:

“Minha senhora aos valores que oro… Negras e fartas noites, tanto tenho cantado…”.

Declamei alto. E assim foi que voltou seus olhos de cigana pra mim. Quando ouviu, bem poderia ter achado que fosse com ela. Falante, espontânea, divertida passou a contar as histórias por trás daquele e outros vestidos. Que havia sido casada, sim, separado, criado uma filha, agora com onze. E que em momentos agudos de profunda tristeza, mais raros que comuns, deixava a pequena com a mãe e soltava-se a andar por ai, a beber e a namorar.

São bem conhecidas a palavras frouxas, que deixam aos ventos, os taxistas, que por essas vias reinaram absolutos. Canastras fabulosos de toda cidade. Então, passivo me pus a ouvir. Havia esse domínio acabado? Nessa mulher, havia uma competidora dura, ousada, sagaz?

Minuciosa, indiscreta, voraz fez da voz afável, se ocupar e acolher com riqueza suas aventuras. Eram incendiárias. Contou-me do compartimento falso no carro, sim, das roupas escondidas, calçados, maquiagens. Contou-me das toalhas, dos artigos íntimos que carregava, tudo, dos amores. O próprio vestido, que estava, era fruto de uma iluminura nas páginas da noite passada. A intriga, o escândalo certamente não saía daqueles lábios. Que desejava ver.

Tudo que dizia adaptava-se, instalava-se com uma maleabilidade extraordinária, digna dos que possuem alguma sabedoria. Eu mantinha-me, pois, em um silêncio criminoso. Não tinha por suas histórias nenhuma recriminação. Julgamento sequer. A mais pura miséria do homem é falta de reação. Travado, ainda que adorasse. Éramos ambos, almas canalhas, sobretudo.

Saíamos da Avenida Presidente Vargas, na altura da Cinelândia, virando a Rio Branco, quando ela me disse:

– Se tivéssemos tempo…

Com escárnio suspirou, voltando o curso para a descrição de um ardor carnal que vivera. Aquilo ficou palpitante na mente, a ponto de não lembrar o fim trágico porquê passara. E riu muito. Retornou alguma seriedade, logo após calou-se. A única vez, por toda a viagem.

Tentei fazê-la retomar o que havia deixado, sem sucesso. Palpitava como uma pancada. Retirava a máscara, vez em quando, como a estimulasse fazer o mesmo. Justo, não ter seu rosto na memória? O fato é que ela a protegia.

As nuvens que embalsamavam a luz, já não incomodavam. Cobrou-me. Deu-me o troco. Nisso, ainda mantinha um fio de esperança. Parece ter sorrido no final, timidamente, enquanto o corpo contradizia a simplicidade do gesto. Um castigo não saber a dona daqueles olhos, meu funeral na terra.

Quanta incógnita, quanta liberdade mais ela provocaria, por essas ruas? Era ela a cigana das mil e uma noites? Por Deus, quanto mais os ouvidos de um homem seriam capazes de suportar? Eu, um Othelo traído pelas circunstâncias. Deveria eu, romper a barreira que existia, propor algo insano no ofegar do pescoço? Não sei.

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