Sua família a despencou do interior pro Rio de Janeiro ainda jovem. Não viera para conhecer praias, ter espírito carioca, não. Nunca largou sotaque, apesar de menos evidente no prosseguir da vida. Sequer vira o mar.
Uma senhora, que chamava de sua, a viu numa feira, a acolheu, deu de comer, beber, vestir e os primeiros rudimentos de alfabetização. Um fato, assinava o próprio nome, nada mais. A casa era grande, uma área gigantesca com árvores e flores num jardim. Ficou encantada com as cores nos canteiros. Deslumbramento que perdeu anos em diante.
Instalada na Abolição era sabido intimamente que tinha o nome Naná ou Nanã. Os registros não especificam com exatidão, mas,referida por muitos como Preta. E, assim, as visitas ou na mercearia perto a invocavam. Em dias de festa ou reunião os convidados não a viam mais do que de fato era. Enquanto atendia, clamavam, Preta pra cá, Preta pra lá, com ar de exigência.
Desde que iniciou seus serviços nunca tivera como ter falta ou atraso, alojada num quartinho aos fundos. Sempre disposta, por vezes convocada aos gritos. A certa hora, qualquer zunido de insetos era no silêncio da casa um escândalo.
Agia como sua respiração dependesse disso, passava pelo corredor escuro até a cozinha, para comer restos, que sobrara de alguma comemoração. Ficava dias na contida angústia de ser detratada.
Os anos passaram e já não se incomodava em ser vista como animal doméstico, sempre frequente na sala ampla. Resignava-se. Cinquenta anos ou mais. Não vira mãe ou irmãos, nem notícia houvera. Sem documentos em mãos, retidos, sem qualquer fé de compensação.
Tivera três abortos bancados por sua senhora. Atenciosa, permitia o acompanhamento de gente vestida de branco onde estava. Sofrendo de infecção num colchão, a medicavam.
Uma vez de tanto ouvir o entregador da mercearia, tentou fugir, como fazem os apaixonados. Descoberta, porém, fora confinada num quadrado sem janelas, ainda mais ao fundo da grande casa, nomeado de o castigo do buraco. Ouvia baixo a indignação da senhora, exclamando ser valiosa demais para perdê-la.
E que a colocaria nos jornais, caso escapasse. Que ela iria ver o que lhe aconteceria. O marido não externou reação, menos ainda de acalmá-la. Com a segurança cruel de quem a visitava a noite, ponderou dizendo que ao cão bastava saber quem é seu dono. E, não se ouviu mais ele.
Sua senhora decidiu fazê-la ajoelhar e rezar. Usava a bíblia como forma de educar, justificava. Único livro que tivera. Por isso, dizia ao marido, não precisava de correntes.
Houveram oportunidades, verdade. Mas não sabia onde ir, engasgava com o coração gelado. Assim anos se iam, sem ver o mar, talvez o último desejo. Chegara a conclusão que a velhice a tornara além de robusta, covarde. Acovardara-se. À medida que acumulava dúvidas eanos, acovardava. Punia-se severamente. Mas e todos não sempre o fizeram? Ao menos isso ela podia, punir-se.
Antes das cinco já preparava uma mesa farta. No decorrer, regava as flores da senhora. Trocava as fraudas do marido da senhora. Acordava o netinho da senhora, dele, de quebra tinha afeição, era criança. Antes desse, outros pequenos privilegiados da família a deixaram com algum apresso. Mais próximo do que já entendera por amor. O que se perdia, quando cresciam.
Limpava, lavava, estendia, fazia almoço todo dia. Comia em pé na cozinha, a espera de“Preta!”E, não era dispensada antes que ajeitasse, sobre todos os efeitos, o resultado da refeição, o que incluía desde a pia às migalhas no chão. A tarde inteira era feita de arrumações que sua senhora cismava. Por vezes, ela cismava também com a vizinhança, a cedendo. Quando outra senhora, muito satisfeita, por a achar muito prestativa, promovia um cocktail em homenagem a sua senhora. Os motivos, os mais supérfluos como de inauguração de talheres, por exemplo.
Nos últimos tempos já não dispunha de tanta força, com a coluna vergada. Mais tardar, na hora do jantar já andava caindo pelos cantos de sono. Mais um pouco estaria deitada, exausta. A senhora fazia-lhe um grande favor quando mandava trazer comida de fora, reclamando. Antes de desabar, ainda dobrava delicadamente os trapos que vestia, os guardava num réquiem improvisado que a dona da casa arranjara e dera a ela, como fosse um presente.
Nanã não fora se recolher em uma noite fria nos remotos meados do século dezenove, onde data o auge do comércio de pessoas africanas no país. Menos ainda era ali um engenho de açúcar, dos muitos que houveram por aquela época, por toda aquela região.
Embora, depois de mais dores sobre o fino colchão, já muito idosa, Nanã acordara livre. Compreendeu absolutamente nada. Despertada pela movimentação na casa, ouvindo ao longe, atenta, feita por agentes especializados em resgate de pessoas em situação análoga a escravidão. A princípio assustou-se. Negou sair da cama.
Já na delegacia de Pilares, para fins de depuração, janeiro de dois mil e vinte um, depois de ser liberada do depoimento, saiu com a certeza que a senhora pagara a fiança e sequer fora algemada, com a certeza que receberia três salários mínimos apenas, como indenização de privação de toda vida. Virou-se a um desconhecido, enquanto esperava a assistente social, atrasada, postou-se na rua e disse:
__ Posso ver o mar? Pra onde fica o mar?