A cara retorcida, os olhos, um cacho do cabelo crespo que lhe caía sobre a testa. Uma luz entrava no quarto, iluminando o corpo e o movimento bonito que fazia. Enquanto eu me distraía, ele pinçava meu coração com os cinco dedos e sorria.

Absorta, a mim restava aprender-lhe os cheiros, mapear-lhe as texturas, lamber-lhe a pele e me abandonar em seu ritmo marítimo. Ele, que foi criado longe do mar, era mansidão e correnteza, silêncio e estrondo de ondas. O olhar, por vezes melancólico, era um torvelinho me arrastando para o fundo. E no fundo, escuridão de meter medo e alegria de golfinhos.

Aprendi, desde cedo, suas marés e ressacas. A onda que se quebrava em beijos recolhia-se levando tudo, abraços  e memórias de abraços. Sonhos e sonhos de sonhos. Na areia, a bruma e os pequenos furos que a água faz. Marcas de passagem.

A língua viscosa como um molusco se guardava na boca cerrada em concha, se recusava. Até que um dia se abria outra vez, em veios de saliva. Mais ondas, mais ressaca, maresia revirando o bucho. Apetite nenhum. Cheirar um limão, talvez. Sentir a brisa, isso sim. Que mais podia uma náufraga de peito oco?

Peguei corrente de retorno.

– Vai para onde, mainha?
– Sei não. Para um lugar outro sem nós, onde se converta choro em rio, se faça nele brotarem peixes, pedras, plantas e larvas. E me ensine um modo distinto de respirar.

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