CRÔNICA | Fragmentos de um elo

créditos: Marcella Saraceni

Eleonora diante da penteadeira, iluminada lateralmente por um abajur, antes de deitar-se ao lado de seu companheiro, que já não dava sinais de ouvi-la, refletia por vezes em voz alta, dentre tantos acontecimentos naqueles dias, os que mais a incomodavam.

Parecia-lhe estranho saber, por exemplo, que sua mãe ainda viva, apesar de entravada na cama, já lá sem muita esperança, nunca vira uma lâmpada, mesmo sequer desejou. Adepta das velas. Via na luz artificial o demônio instigando os homens a substituir as coisas cristãs. Recordou o folheto que recebeu na saída da esfumaçada fábrica têxtil, alertando uma reunião de mulheres para reclamar salários iguais, abusos sofridos e direito à paralização, de maneira a pressionar tanto os patrões, como a polícia, quanto os maridos, que as impediam de ter mesma voz. E, por fim, recordou os continuados enjoos, insistentes ao longo da semana.

Ficou francamente entusiasmada com o papel. Guardou-o dentro da gaveta, abaixo de um leve material de maquiagem. Leria de novo antes de dormir, caso pudesse. O marido despertou, chamou pra cama. Ela se penteava novamente, reiniciando o rito. Virou-se resmungando sonolento qualquer coisa incompreensível.

Quando a campanha das forças alpinas da Itália entraram num devastador conflito de trincheiras, Marco recebeu convocação. Dos que retornavam, vinham traumatizados devido os bombardeios e granadas, jovens acometidos pelo shell shock. Debatiam-se enquanto andavam, feito uma máquina de tremer, que não pudesse desligar.

Ao passo que tentaram embarcar num navio de carga para a América do Sul. Entre o bairro operário e o cais, viram uns veteranos. Não mais pareciam gente. Eleonora deu uma última olhada para Costa. Antes, deu adeus as velhas, a sua, perto do suspiro fatal e aquela Europa, imaginando o novo mundo, mais além. Virou e não mais pensou, em seguida, confirmou o sinal de gravidez, vomitando antes mesmo do gigante de ferro zarpar.

*

Palavrões laceravam entre o quarto e o corredor. Ecoavam furiosos por toda casa. O estopim desfraldava rancores violentos, torturadas vozes escondidas por longo tempo, dentro de mãe e filho. Não corrigiu nada, veio e foi dito, de bate pronto, bateu a porta, pôs-se fora. Só, dona Eleonora tentava justificar as atitudes do filho. Homem feito.

Murmurou algumas vezes, olhou em torno, sentou-se. Havia uma foto antiga, pegou, deixou perto, acendeu um cigarro. Baforou demoradamente o questionando, por ter fora do casamento uma filha, logo ela. Na foto, o marido morto à anos na greve de 17, parecia questioná-la também. O jeito dele falar ali sobrevoava a memória. Lembrou dos ferimentos, da perfuração por sabre da polícia montada, que partiu retalhando carnes de trabalhadores. Lembrou do juramento que fez, de criar o filho com se ali ele tivesse, orientando. Tudo caiu por terra.

O filho enriqueceu depois de juntar-se à oligarquia paulista, derrotada nos anos trinta. Tornou-se patrão e tornou-se tirano. Lutou para manter os expedientes de doze horas diárias, sem férias ou licença maternidade. Seus círculos conservadores, odiavam a populaça, apesar de ter dela, suas amantes. Não pôde manter nada disso, mesmo derrotado, prosperou.

E, assim que a menina ilegítima nasceu, sentiu-se desobrigado de criar, mandou apenas entregar um envelope. Foram as duas despachadas, de modo a manter as aparências, pois a menina era escura. Nos bastidores a chamavam de mestiça. O pai ouviu não mais que o primeiro berro, a avó não soube nem do paradeiro.

*

Na rua do Lavradio com o Senado olhava as raparigas do pernoite. Foi uma delas e bota tempo, vinham em sua direção, hoje as controlava, as protegia com o recurso das diplomacias da rua e das navalhas. Dois faróis surgiram e as pernas delas surgiram, se equilibrando nas pedras lisas do chão, o carro vinha à elas, um homem saía e o carro esperava fecharem negócio.

Horas depois, aquietada, fervia água pro café, mal podia ou permitia pensar em algo fora do cotidiano, fora da real necessidade do cotidiano. Saiu da cozinha foi a área, esvaziou a pia, pegou roupa, as estendeu. Nessa manhã porém, fez uma aproximação fatídica, a filha não teve pai, ela não teve pai, a mãe tão pouco teve. De um lume frio à lucidez triste, a um só tempo. Recordação familiar somente um crucifixo, que nunca fez uso. Um velho estojo de maquiagem, a muito usado, guardava. Curiosamente tinha um nome, Eleonora gravado. Talvez fosse uma marca antiga, talvez.

Preparou a mesa, chamou a Júlia. A Passista da Imperatriz que era a sua mais nova,  morava e vinha de Ramos, dormiu por lá, saiu do banheiro. O olho ainda roxo e as lantejoulas da noite passada, que simples banho e gelo não removem. Comeu o pão, ficou calada.

E, ela voltou a falar pra largar aquele homem. Que já tinha vivido isso, não queria o mesmo pra filha. Limpava a carne com habilidade de açougue. Havia se defendido e quantas vezes, em luta corporal até com esses canalhas. Isso passou rápido e irredutivelmente pela cabeça. E não saiu viva, inteira? Um deles se tremia tanto, achou que ia se cagar todo, fugiu pulando com as calças na mão.

E foi o noivo novamente, disse. Ciúmes? Como não haveria de ser outra coisa, não se dignou a responder. Nem terminou o noivado. Não teve coragem.

Antes de sair, reclamou do salário baixo perante os demais na firma, apanhando bolsa, colocando salto, como que querendo mudar de assunto, foi submetida ouvir nova ladainha da mãe. Não parecia querer sugestões, de resto, já viu darem parte de coisas assim no morro. Resolviam. Fechou a porta antes que acabasse.

Pela fresta, um céu de incerteza azul acinzentado, com nuvens pervenças drenando a luz na profundeza do horizonte. Pássaros revoavam.

Não retornou, silenciada de vez pelo desconfiado do noivo. Ao alvorecer foi achada. A feição, como quem agoniza sob véu branco transparente, boiando, inchada, dentro da baía. Lamentou a mãe no enterro, pediu justiça. Teve na percepção da debilidade a solidão que muitas carregam.

Noutro dia, assim chegou pelos jornais: Réu confesso, loucura de amor, crime de honra, tratamento psicológico, em três meses, liberdade.