pela única fresta, ele conseguia ler a pichação – feita com sangue mesmo – na parede da cela

“Você é mais bonita que um vândalo

mais bonita que uma pessoa colocando fogo numa coisa

mais bonita que a própria coisa colocada fogo”


e riscou mais um pauzinho. 4.287 dias ali. lembrou da Cleonice, o amor da sua vida – que odiava o próprio nome e por isso era chamada de Cleo – e do momento em que leu essa mesma frase para ela. era uma forma de matar a saudade da Jéssica, sua mãe. ela sempre falava do allan jonnes, não o piloto, mas o poeta. 

eles tinham sido contemporâneos, mas ele morava distante, no Brasil do norte. numa cidade em que, segundo o poema, desenhavam araras nas paredes, mas não havia araras por lá. havia só esse moço com poema sobre a revolução cubana e versos incendiários que a mãe gostava muito e vivia declamando, até mesmo antes de desaparecer. 

aprendeu a gostar de poesia e repetia essa para Cleo, como uma forma de lembrar da mãe e mantê-la viva na memória, quando ela teve a ideia: e se a gente sair, só um pouco, pra colocar fogo numa coisa? 

bastou aquela frase para que ele se inflamasse. e se? 

ainda lembra da mão do policial em volta do pescoço dele e do peso do joelho dele nas costelas. lembra de como foi jogado no camburão, espremido e de como todos riam dele. demorou a entender o motivo. como é que ele não tinha imaginado? pela fresta que sobrou, viu quando levaram a Cleo. tinha sol. 

ele não sabia que esse tipo de coisa deveria ser feita a noite. ele não sabia de tanta coisa. 

não sabia que se tivesse frequentado a escola, como seus pais, estaria mais preparado pra esse momento. dizem que bullying marca, mas ensina. nunca saberá. aprendeu, do pior jeito. 

faz anos que tá aprendendo, todo dia. mesmo sendo tudo diferente agora. não tem mais o corpo de antes. não se esparrama mais pelos lados e nem se espreme dentro das roupas, para caber. há muito, deixou de tentar. 

o alívio fica por conta de não ouvir mais os risinhos dos carcereiros. mas, ainda sente falta de quem era. sente falta de habitar o próprio tamanho. e de tudo que ficou pra trás. desaparecer tem dessas coisas né. 

será que algum dia não restará mais nada? por isso, escreve com sangue na parede. e risca os dias. sem notícias, não sabe se sairá. ou se sumirá, ainda mais, sem si. 

não sabe se sente mais raiva ou mais amor, afinal, fora ideia dela, né? 

foram ingênuos em acreditar que, mesmo em 2041 isso poderia acontecer? mesmo após a falsa revolução e toda informação, ainda foram vítimas do que seus pais lutaram bravamente.

corpos dissidentes não podem se rebelar. mas eles não sabiam disso ainda. 

mas estava perdido naquele momento do

e se?

repetiu pra si mesmo, sentindo a empolgação crescer, feito um balão à gás dentro do peito. se não saísse, naquele momento, explodiria

tropeçando, tentou correr. vestiu o moletom preto – que quase não fechou – as botas, tipo coturno, que herdara do pai, a máscara, sem inscrição alguma, também preta e foi. 

foi. essa palavra-perseguição. e se?

e se tivesse desistido?

mas foi

demorou até encontrar um lugar que vendesse combustível sem todas as exigências necessárias. documentação, comprovante de residência, impressão digital, fotografia da íris, entre outras coisas. 

sua mãe dizia que antigamente era até possível abastecer carros e motos e sair por aí para trabalhar, passear, o que fosse. existia o pré-sal e postos em que você chegava, abastecia e saía. devia ter sido um tempo bom. 

e foi. 

isso foi há tanto tempo que nem importa mais. naquele dia, ele conseguiu. carregou os 20 litros por quase 8 km, mas compensou o cansaço pela excitação. só se lembrava de ter sentido o coração tão acelerado quando tinha crises de ansiedade. mas, dessa vez, era bom. 

o coração saindo pela boca, espremido no peito, era o motivo, de fato. eles iam tacar fogo em alguma coisa. ele poderia, então, finalmente, contemplar toda aquela beleza que seus pais lhe falavam quando era pequeno. era mais bonito que uma coisa pegando fogo. a homenagem definitiva que faria pra sua mãe e sua rebeldia. 

e foi. 

chegou em casa, pegou Cleo num abraço e fez a convocatória: vamos? ela já o esperava. pronta: roupas pretas, luvas, capuz, botas e máscara. tudo escuro. pensou em botar um lenço vermelho, mas não queria chamar a atenção. estava, assim como Paulo, excitadíssima. 

foram. 

com tochas, caminharam por toda avenida, pensando onde é que colocariam fogo. nos bolsos, algumas pedras, afinal, já que estavam ali, por que não quebrar umas vidraças. existia aquele lugar onde havia sido um banco, quando ainda existiam agências. parecia perfeito. 

ela jogou a primeira pedra e ele ouvia ela dizer: lindo, lindo, lindo

e correram. 

logo adiante, a antiga concessionária, com alguns carros lá dentro. mesmo de máscara, ele sabia que ela estava sorrindo. pessoas, como eles, que cresceram depois de tantas pandemias, sabiam quando o outro ria, mesmo de máscara. 

e ele riu também. ela era o amor da vida dele.  devia ser assim que seus pais amaram, antes de sumirem. 

e correram. 

ele não sabia como era sumir. até que sumiu também. quase quatro mil, duzentos e oitenta e sete dias ali. ele sumiu. a cleo sumiu. só não sumiu a frase, a coisa, a própria coisa, colocada fogo. 

ele se lembra de como celebrou. jogou a gasolina, viu ela escorrer, riscou o fósforo e se afastou. rindo.  a vitrine queimava. o fogo chegou até os carros. devia haver um resquício de combustível nos reservatórios. tudo explodiu

do outro lado da rua, ele via quando o sol ardia. e queimava. eles se beijaram. aquela era a melhor lembrança do amor. o ápice. o auge. a rebeldia. comer o sistema pelas beiradas. viver a vida. sentir o coração batendo, de fato. e transformar a velha amiga ansiedade em aliada

e correram. 

antes do terceiro quilômetro, já sem fôlego, foi alcançado pelo PM. viu pela bota. era igual a sua. a fúria também era bem parecida. só os objetivos eram opostos. mas, mesmo sabendo que tudo terminava ali, se sentiu feliz. foi livre, ao menos um segundo. viu o fogo na direção do sol. soube do que sua mãe falava. beijou a Cleo e soube o que era amor. estava bom. 

saber disso tudo compensava o que não sabia. gordos não podem ser black blocks. foram flagrados pelas câmeras de segurança e apesar de todo aparato de roupas pretas, botas e máscaras, não foi difícil reconhecê-los. perdoou Cleo

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