CRÔNICA | O GOSTO PELO RISCO

Como num pulo, entrou. Deixou bolsa na cadeira próxima. Atrasada. Ligou o chuveiro.
Tudo que havia na pia, janela, prateleira do box provara contato consigo nua. Uma
série de produtos em línguas estranhas para cada delicado pedaço seu. A ocasião
exigia que fosse minuciosa. Ainda mais atrasada. Deslumbrante deixou o quarto,
depois de retirar a roupa estrategicamente entocada num lado obscuro da gaveta do
armário. Com salto na mão, macios pés no taco frio, passou chave, foi-se encontrar
com o amante.

Dentro do carro de faróis baixos via o marido chegar. Estacionou na rua. Parou,
encostou, fez sinal ao dono bar descendo porta. Nem precisou implorar, pagou, bebeu,
fumou. Juntou garrafa no teto ao coldre. Há quem diga que não sofria. Observava à
calçada. Cismava de tentar vê-la saindo para última reunião de quarta. Espécie de
pós-trabalho, que repetia, obrigava sua função. Ela gostava do arrisco. Esperava se
cansar. Deixou mensagem justificando, muitos corações, beijos, promessas. Observou
até a quarta garrafa, deu ré na contramão. Ia lentamente.

Entre o quarteirão de uma grande transportadora e a Avenida Brasil, cantou pneu pelo
menos cinco vezes no traçado ondulado. Mais a frente, perto de um supermercado
havia uma blitz. Não se preocupou, pois, além de tudo em dia, ostentava a carteira da
ordem dos advogados. A fila ia mais rápida do que se poderia torcer. Ao contrário do
que supunha, logo na sua vez, foi pedido que encostasse.

Um polícia barrigudo caminhou até o acostamento, lanterna em punho, olhou, olhou,
deu meia volta, gesticulando. Pelo retrovisor gesticulavam. Minutos depois, um outro
retornou, nada disse, enquanto carros mais recentes na expedição eramdevolvidos
rumo à correnteza da pista. Nessas circunstâncias o melhor era acalmar.
O amante mais de meia hora na recepção do motel debandava. Desligava o telefone.

Então, recebia ela a notícia da senhora do balcão que fora testemunha num caso de
assassinato nesse mesmo hotel. Ciúmes. Quando em vez, um quebra-quebra
acontece nesses motéis de estrada. Alguém traído faz a emboscada… Vira um
merdelê só, e, se dá briga, dá segurança, dá polícia, dá porta de cadeia, dá advogado.
E, tiram-se valiosas amizades desses encontros. A senhorinha que organizava os
quartos era uma dessas valiosas amizades.
Endireitou o vestido justo de couro, apertou os lábios no lenço, retirou o excesso do
batom, buzinou. Quando um coroa da civil se virou asperamente.

— Doutora Ana?
Pediu licença, pegou sua carteira, a levantou, balançou para todos. Pediu perdão
tentando claramente se retratar explicando a operação que ali ocorria. Ana fez que sim
com a cabeça, pacientemente. Não faltou cordialidade em deixar seu número a
doutora, caso precisasse. Por sua vez, retribuiu com o cartão. Saiu acenando.

Assim dizia “Dr. Ana Caliente Velasquez dos Santos. Dos Santos & Associados | Advocacia
Criminal.” Para muitos, apenas doutora, a outros, senhora Caliente. Por isso não
dispensava uma boa delegacia até nos finais de semana. A coisa ali ficava agitada.

Doutora Ana era a típica, a mais bem acabada figura que se poderia simbolizar o que
convém chamar de um “advogado de corre”. Não recordava a última peça que teve de
escrever, ou de escolher um jure, ainda menos de ter assinado defesa. Era entendida
das brechas da lei, assim acionava o submundo do crime, suas organizações. O que
bastasse. E fez disso pouco a pouco sua filosofia de vida.

Uma vez, soltou um rapazinho, tinha vinte e cinco. Contrabando de celulares pra
presídios, milícias… Um novato mexeu na sua mala fora dos procedimentos, o menino
alegou ser simples camelô da Uruguaiana. No impasse ligações foram feitas, doutora
Ana apareceu. Apaixonou por ele. Um mês depois estavam os dois em viagem,
desfrutando de uma pousada em Itaipava. Disse em casa que precisa de férias.Gostava do risco. Gostava de Itaipava. A pousada ficava justamente na rua da sogra.
Durou pouco. Reincidente foi preso, condenado. Guardou os bons momentos. Até
hoje, quando bebe pensa nele, não raro o leva consigo pra intimidade.

Dr. Ana acelerava. Desviou o trajeto, se defendeu na bandalha, era agiu com o carro.
Seu pai quem a ensinou, conhecido motorista de fuga nos anos oitenta. Quase tomou
a direção de casa, mas tinha tempo. Pouco mais de uma hora cronometrado. Passou
na parada do 928, não achou ninguém conhecido, subiu o morro da Itambé em
Ramos, antes, em dois botequins na peregrinação. Chamou no cangote o forró que
corria.

Bar do Alto – um conhecido refúgio de meia idade para o discreto aconchego dos
flertes subversivos. Aqueles que muitas famílias condenam. Ela sabia bem onde
estava pisando. Como uma torre fincada no cume, o bar favorecia a vigilância de toda
entrada e saída. Muitos casais se entusiasmavam com a vista desde a igreja da penha
ao “brt” pra ilha do fundão, pegando dali todos os conjuntos de favelas da maré ao
piscinão. Essa área, já fazia uns bons anos, era controlada pela milícia, tinha a
circulação da polícia liberada e ela bem gostava de um coroa de bigodes que andava
trepado de neurose, de medo, que essa gente carrega.

Não fossem os consecutivos pedidos pra dançar, um após outro, que não a deixava
ter respiro, cheia de um balaço das trevas, despertado na cadencia sinuosa que
aconselhava fascinando, a súplica ou a loucura, aos pobres mortais, haveria parado
numa mesa, pedido caipirinha, sacado cigarro pra fumar. Quando procurado o maço
dentro da bolsa, achado o telefone do civil, logo ele, que a reconhecera momentos
antes. Ligaria.

Não obstante, negando uns pretendentes, acabava afinal, por seguir rigorosamente
nessa sequência.
Depois que o bigode a beijou, suas mãos levadas ao quadril de pele de couro sintético
que a advogada as curvas explicitava, disse soltando surpreendido na ladeira a
sombra da noite:

— Dr. Ana…?! Deus…

— Há essa hora sou senhora Caliente, pra você! – Murmurou, faltando fôlego.

Havia casais rua abaixo, mas flexuosos e obscenos… Gostava do risco. Prosseguia.
Como pudesse dar de esporas ao cavalo. Despertaram um alvoroço que só serenou
na tarde ao final de sábado. Mesmo repreendidos por más línguas, no templo
evangélico de manhã. Não falando todos noutra coisa.