CRÔNICA | Os urubus

Foto: Eurico Zimbres/ Wikimedia Commons

A alvorada enunciaria mais um dia nebuloso. A luminária lá no alto, acostumada a me acordar, não sem resistência, às quatro e quarenta e cinco, estranhamente não acendeu. O sol morrera?

Desloquei-me a uma sala perto de casa, local que dedico estudo a avançados pergaminhos. Sentei-me junto ao instrumento que digito. Muitos títulos empilhados na extensão da mesa, que, por trás da velha máquina, assaltavam-me o pensamento. Sobretudo ao reconhecê-los, um a um, as palavras germinavam. Palavras que não me deixaram dormir, obrigando-me a trazê-las aqui.

Aliava-me às traças escaladas nas paredes, às teias luzentes sob a lâmpada, a um copo de café do dia anterior e ao cheiro de cigarro de algum antigo escritor, que desejou, por essa hora, me auxiliar. Sombras que me acompanham. Lá fora, o escuro se rompia em trovoadas de dezembro, enquanto, em lembrança, retornava dois meses.

Empenhado em acalmar os demônios internos, como um pintor perante a tela em branco, decido caminhar. Encontro-me em uma rua qualquer, para dentro da Ilha do Fundão, cercado pelo lodo da Baía, que cerca a ilha. O cenário largo do campus universitário, no final de semana atraia frequentadores. Era possível ver famílias, casais, jogos divertidos de bola nos gramados, cruzadas de pipas que, ou terminavam em cerveja, ou em agressão, prática seguida à risca. E, acima de todos, plainando, os urubus.

A coreográfica de vultos, como num sopro entre nuvens, angustiava e comovia. Pouco a pouco, sem externar vontade, fui sendo magnetizado ao seu epicentro. Tentei distrair-me com as árvores e os ventos, mas os ventos, como mensageiros melancólicos entre as árvores, atiravam-se as folhas aos galhos, remexiam provocando som, ora furtando-as ao chão, ora ao céu. Quanto mais o bando era revelado, mais era induzido.

Logo depois da vila de pescadores e depois de seus moradores recriminarem atenção sobre um homem por ali sozinho, sem pretensões aparentes, em direção ao nada, insurgi um foço. A revoada de corvos em círculos outrora tão distante, agora atemorizava-se com minha presença. Seus olhos refletiam raiva, a raiva da fome.

Mantive-me ausente, paralisado, observando. Havia carne nos bicos e nas garras, estirada. A divisão justa, não havia. Na disputa, havia a saraivada de asas e a supremacia de uns sobre os outros. Contive-me com pedras as mãos. Com pedras os afastei, temporariamente. Aproximei. A carne, porém, dentro do foço, não era de um rato, ou gato, levando consigo a dor de seu destino; nem as sobras da limpeza de peixes, da vila ao lado. Não era um animal pequeno. Nem de um cão, a sua sorte, abandonado. A carne ali apodrecendo era de um homem.

Escravos da fome, os abutres, logo me afastariam. Ali, como bem sabíamos, sempre foi desova de cadáveres. Sabíamos. E a imagem porém, se aguardara em mim. Um homem nu ou quase nu, com alguma peça, vermelha ou azul, sendo concorrido pelos bicos poderosos das hienas vorazes.

Muitos sempre vieram com a justificativa consoladora de que eram bandidos, ou só poderiam ser. Mas, quantos amigos não vimos se perderem com a vida torta da polícia e do tráfico, esticados no asfalto?

Com o tempo, esse registro seria reservado em um outro poço, o da mente. E, viria a ser substituído por tantos sumidos nas áreas que aqui envolvem. Entanto, naquela condição, sem nada saber dele, um semelhante, ali, entre o esgoto, me adoecia a alma, entristecia ainda mais meu ser. Foi quando, a sua dor ou a miséria minha interrompeu a noite. Ele me trouxe aqui diante da máquina, diante de mim. Depois de dois meses, em honra de…

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