CRÔNICA: Tragédia suburbana

Foto: Wallace Pato

Madrugada ingrata. Sem sono, sonho ou repouso. Me bate na porta um bêbado, enquanto grita meu nome. Não reconheço voz, nem silhueta, que se apropria do umbral, com sombra monstruosa, como pudesse invadir.

Uma hora depois, já clareando, com um copo quente de café na mão, vendo-o assoprar e vendo-o beber, já calmo vinha um amigo desabafar acidentes de rota. Esse amigo, que devo preservar o anonimato é primo de um outro amigo, que é filho de figuras conhecidas de velhos bailes proibidos, que se estendiam por toda Avenida Brasil.

Qualquer fato ocorrido, por aqui, logo se levantava toda a família. Nobre forma de se compreender a sucessão de tronos pela periferia. Levou-me a manhã inteira, lentamente, desceu à tarde. Quando enfim desistiu e chorou. Lágrimas refletidas no piso, escorridas da face medonha.

O cara era um vendedor assíduos e sagaz. Devo confessar, dono de certo estilo que o destacava. Uma espécie de cacheiro viajante da nossa era. Falador insistente, informava por todas as esquinas os casos em que se metia. Não eram brigas, mesmo que essa existissem, nem dívidas, roubo ou volta. Sua fraqueza na vida eram as mulheres. E de fato, as moças entre seus braços encontravam-se em seu elemento, como harmonia à natureza.

Há alguns anos, amigou-se. A palavra casado lhe causava nauseais. Ousado, além de manter firme os afetos que arranjava, deu a voltar noite à dentro, com todos os sintomas, desvarios e rastros de beijos, arranhões e odores da chumbação.

Conforme dizia, a esposa não via, não percebia, ainda carinhosa o cobria, fétido de álcool, na cama, antes de retornar a dormir. Vez em quando, despertava com a mão dela na cabeça, num leve cafuné, o olhar sério e meticuloso de mulher.

Um homem pode ser vítima de seu próprio encanto? Como em um espelho mágico onde é convocado a ver-se belo, disse uma vez o poeta.

Quando perguntado do seu feitiço, afirmava ser o perfume. Reiterando:

– Tô ou não tô, cheiroso?

Suas fãs se somaram, freneticamente, no período dos últimos dois meses, em Bonsucesso, Penha, Andaraí, Irajá, Olaria, rua São Januário, toda a Região da Leopoldina até Gericinó, já Marechal Hermes, Madureira, Acarí, era seu domínio, nem contava. Deu-se conta e almejou o próximo passo à zona sul.

Em todo seu âmago, acreditava-se o amante completo. Um mito venerado em locais como o nosso.

Numa segunda-feira, na volta da boemia, encontrou a casa apagada. Na escuridão entrou trôpego. Sem televisão, sofá, geladeira, armário, a luz não acendia, se havia cortado, a esposa não havia, nem havia um bilhete deixado. Num silêncio mortal antes do assombro, esvaziou nas paredes o uísque que carregava na mão. Mas não se põe fogo à memória.

Tentou suicídio, porém fraco demais para isso. Vizinhos o acudiram. Então se engarrafou por inteiro. Vindo parar às quatro, pulando o muro e se esmurrando, apavorado, na minha frente.

Nos três dias seguintes, voltou a me preencher de seus lamentos. Se passaram umas semanas, retornou ainda pior. Não raro tava jogado ao meio fio. E, assim se manteve tantas e tantas noites de patrulha, na companhia da lua e das mulheres que tentou amar.

Despretensiosamente esses dias ouvi, contemplando e bebendo uma sobre a laje, na minha existência sem graça a paisagem, um samba. Que de resto, a história é do conhecimento de todos os suburbanos. Pois é, aos de coração vadio, seguia uma tragédia, porque, “não existe malandragem pra mulher”.

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