CRÔNICA | Último saco de arroz

Mercado do subúrbio carioca - Foto: Guilherme Santos

Foi quando da ausência à fina flor, a alma sorriu. Havia a pouco virado um corredor, quando me deparei com a criatura. Já não haveria tirar os olhos dela.

Por onde levava seu carrinho, debruçada sobre ele, levemente, carregava nos quadris o divino peso dos tambores. O som me havia invadido, e assim, invadido todo mercado. Ainda que pudesse ver neles as virtudes mais doces, de resto, minha mente era só pecado.

Era alta, magra, com luzes nas pontas dos cabelos. Uma auréola orgulhosa de fios dourados, que perfeitamente envolvia todo o rosto delicado, sua boca, seu ser, por consequência meu ser. Nela, não havia o destaque forçado, não havia desejo de concentrar desejos, mesmo que o fizesse. Razão pela qual acredito, ter um espírito dos mais simples.

Assim, sem perceber, me carregava com ela, como mais uma de suas proles, que eram duas. Crianças de seis e sete, não muito quietas. Logo em frente, via-se pessoas jogando umas contra as outras, produtos caindo, gente se levantando. Foi quando a perdi para a promoção.

Muito embora a safra havia sido a melhor em décadas, graças aos investimentos de bancos públicos às grandes propriedades, o arroz havia dobrado.

O método era antigo, colonial – a moeda interna se desvalorizava, intencionalmente, frente a moeda de transação, então lançava-se mão da exportação. Havendo pouco arroz dentro, esse encarecia. O método consistia em usar a terra e lucrar e usar o povo. E o povo não sabia.

Enquanto as vinhas da ira não chegava e cabeças não eram cortadas, numa sessão de legumes, revi a senhora. Seus filhos a correr, o que não lhe tirava sequer acento da sobrancelha. Quando em vez, pegava um no braço, trazia consigo, fechava o semblante, em seguida gentil, faceira soltava.

Tomei atitude. Esbarrei no seu carro, percebi que faltava aliança. O coração bateu. O sangue se apresentou, me estremeceu. Olhou-me simpática.
Também pareceu-me surpresa quando vi seu saco de arroz, cujo corpo, desengonçado e formoso, tentou ocultar.

Não a perderia de vista. A menor distração poderiam levá-lo. A partir dali percebia inveja, olhares suspeitos, sorrisos entredentes, duvidosos, mantive segura distância. Decidi vigiá-los.

Perto do caixa, varreu a todos o sopro do vento poeirento de uma tempestade. Tentavam se abrigar. Tornávamos apenas eu e ela. Seu vestido flamejou acima dos joelhos, quanto mais tentava controlar mais parecia triunfante, como numa dança flamenca. Desorientei. E esbarrei. E iria esbarrar incessantemente, a levaria junto ao peito, a beijaria, cumprimentando a estação que chegava.

– Desculpas. Disse.

Tendo a sorte de um tímido aceno. Quando correu atrás de pegar tomates, anunciados no microfone, apossei-me do carrinho como um guardião, a espera de seu retorno. Sentia-me homem de família. Quase podendo esquecer a vida que tinha, com que boemia vazia vivia.
Agradecida, conversamos, à medida que os produtos eram reunidos na esteira do caixa. Seu último item, um saco de cinco quilos de arroz, prontifiquei em ergue-lo e ergui. E, como que celebrando ao mais leve contato em sua pele, vinho cor, perguntei:

– Qual seu nome?

– Mara.

Procurou na bolsa, virou-se chamou um dos filhos, procurou nos bolsos. Estendi-lhe as mãos. Ela não as negou. Esboçando ar cordial de moça cativada.

Dali uns instantes, ajudaria levar as compras ao ônibus. Dias depois veria as crianças satisfeitas comerem arroz. Elas dormiriam, nos entregaríamos ao nosso próprio jantar. Os dias passariam. Ela reclamaria alguma coisa fora do lugar e odiaríamos juntos frente a teve os grandes proprietários de terras, nosso jeito de felicidade.

Quando acordei, já a havia perdido. Cadê ela e os filhos? Talvez fora a chuva, talvez.

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