Milico é milico e paisano é paisano, parafraseando Lúcio Flávio Vilar Lírio, que já na década de 1970 disse “Polícia é polícia e bandido é bandido”, no mais sucinto e perfeito resumo das diferenças dos papéis na sociedade. Ele assaltava bancos e tocava terror na época em que os grupos guerrilheiros de esquerda expropriavam o dinheiro dos cofres bancários à razão de dois, três e até quatro assaltos num só dia. Por isso esta modalidade de crime foi incluída na Lei de Segurança Nacional, tornando assalto a banco ato político com o fito ideológico de financiar a derrubada da ditadura.
Mas Lúcio Flávio, que não tinha nada com política, viu seu ganha-pão elevado à condição de ameaça ao regime e perdeu o campo de negociação com a polícia que o mantinha fora do alcance da justiça. Além do Rio de Janeiro, agiu em São Paulo, Minas Gerais e Brasília, sempre com a cobertura policial que lhe garantiu diversas fugas de prisões.
Branco, boa pinta e inteligente, entrava em bancos e joalherias com a facilidade de um cliente. Incurso na LSN, dedurou muitos policiais, inclusive dos grupos de extermínio que agiam livremente na ditadura e mereceu cuidados especiais para não voltar a fugir. Tão especiais que foi assassinado com 19 facadas durante a madrugada de 29 de janeiro de 1975 por seu companheiro de cela no presídio Hélio Gomes, no Rio. O que era o Esquadrão da Morte da polícia, hoje é o Escritório do Crime dos milicianos bolsonaristas.
Dois anos depois da morte do assaltante de bancos e ainda com a guerrilha urbana em atividade nos grandes centros, o general Ernesto Geisel, então ocupante do Palácio do Planalto, desbaratou um plano do seu ministro da Guerra, general Sílvio Frota, para derrubá-lo e instaurar novo ciclo militar mais linha dura ainda.
Geisel convocou a Brasília os comandantes militares regionais e a alta cúpula na capital para reunião do Planalto, sem o conhecimento de Frota. Disse a todos os que se passava e respaldado no apoio deles chamou o ministro ao seu gabinete e demitiu-o depois de uma troca de palavras ásperas de parte a parte.
O “Alemão” ganhou e levou adiante a “abertura lenta, gradual e segura” que foi seu lema e meta. Antes de passar a faixa a João Batista Figueiredo, suspendeu a censura prévia à imprensa e à cultura, revogou o decreto lei 477 que proibia política nas instituições de ensino e o AI-5, que vedava todo o resto de liberdade e direitos civis que ainda havia no país. O monstro das torturas e mortes nos quartéis das forças armadas pavimentou o chão para a redemocratização e a própria Lei da Anistia no primeiro ano de Figueiredo.
O que Bolsonaro fez ao demitir os comandantes militares das três forças armadas nas vésperas do 57º aniversário do golpe que instalou a ditadura foi uma manobra parecida com a do general da abertura, mas apenas na forma. O Estadão publicou nesta segunda-feira, 5, matéria de Andressa Matai e Roberto Godoy que joga luz sobre o processo. Eis um trecho:
“O general da reserva Luiz Eduardo Ramos operou, em parceria com o também general Walter Braga Netto, a missão dada por Bolsonaro de demitir a cúpula das Forças Armadas e consolidar a aliança com o bloco dos partidos do Centrão. Foi num encontro no último domingo de março, 28, na casa de Braga Netto, em Brasília, que Bolsonaro decidiu substituir o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e o comandante do Exército, Edson Pujol. Ramos estava presente à conversa. A troca abalou a caserna e alterou as posições de poder no governo. Braga Netto foi nomeado para a pasta militar e Ramos herdou a cadeira do amigo na chefia da Casa Civil”.
Contrariados com a demissão do general Fernando Azevedo, os três comandantes articularam pedido de demissão coletivo para marcar posição, mas o capitão, usando o general Braga Neto como novo ministro, demitiu os três no próprio ministério da Defesa, almoçando-os antes que o jantassem.
O pano de fundo da mudança dos seis ministros foi mais uma vez a pandemia, suas consequências internas e externas. O comandante do Exército que saiu, general Edson Pujol, resistia ao engajamento da arma na política oficial de combate à pandemia e estava com a cabeça a prêmio há algum tempo. Mas para tirá-lo, havia que demitir o ministro da Defesa, então Bolsonaro aproveitou para trocar outros que tampouco o agradavam.
Entraram a deputada Flávia Arruda, casada com o ex-governador José Roberto Arruda, preso por corrupção durante o mandato, saindo o general Luiz Eduardo Ramos; na Casa Civil entrou o general Luiz Eduardo Ramos no lugar de Braga Neto, que foi para a Defesa; na Justiça entrou o secretário de Segurança de Brasília, Anderson Torres, saiu o pastor André Mendonça; no Itamaraty, saiu a bola da vez Ernesto Araújo e entrou o chefe do cerimonial do Planalto, Carlos Alberto Franco França, que não é ninguém na diplomacia. E na Advocacia Geral da União José Levi foi demitido para a volta de André Mendonça ao cargo que ocupava antes da demissão de Sérgio Moro.
A imprensa no geral alardeou as mudanças como movimento radical e ousado do presidente, uma resposta dura aos comandantes militares, mas tudo não passa da troca de seis por meia dúzia, agradando o centrão com a Flávia Arruda, e os críticos da política externa absolutamente desastrosa do governo com a demissão de Ernesto Araújo. As forças armadas continuam conservadoras, retrógradas e dominadas pelos gananciosos que já estão em mais de seis mil cargos no governo Bolsonaro. Basta ver que os generais saíram desta cadeira para aquela ali e “segue o baile”, no resumo do vice-presidente Hamilton Mourão, único milico eleito em 2018.
Fora isso, a mudança que Bolsonaro queria desde o princípio, a do comandante do Exército, general Edson Pujol, não deu certo porque o sucessor, general Paulo Sérgio Nogueira, também defende isolamento social, máscaras protetoras, “lockdown” e tudo o mais que o presidente não quer. Parece que a manobra não foi de Bolsonaro para enquadrar os comandantes das forças aos seus desígnios genocidas, mas sim das forças armadas tentando fugir à responsabilidade do fracasso do general Eduardo Pazuello no combate à pandemia.