Meu texto hoje vai para você que mora em favela. Quero conversar com você, trocar uma ideia, sabe. Vamos falar um pouco do que vivemos e do que queremos daqui para frente.
Quem vos fala é uma pessoa que nasceu no olho do furacão, dentro da favela, que brincou de pique-pega nos becos e vielas, jogava queimado, pulava corda, brincava de casinha com as amigas, via os meninos pulando de laje em laje correndo atrás de pipas, a garotada na bolinha de gude com o triângulo rabiscado no chão, mas quando começava o tiroteio saia correndo para dentro de casa ou se protegia da melhor forma possível.
O tempo foi passando e nós que moramos na favela ficamos esquecidos, cada um por si e Deus por todos, sempre que faltava luz ficávamos desesperados, porque a empresa de energia não “sobe o morro”. Lembro das vezes que perdemos tudo o que tínhamos na geladeira e o alvo era certo, começou o tiroteio, a bala já sabia o caminho: o transformador.
E a água? Faltou água porque está fraca e não tem força para chegar as partes mais altas do morro, conclusão: desce todo mundo com balde e sobe a escadaria ou a ladeira com os baldes cheios na cabeça – aquela água com um gosto forte de barro e cloro. Um calor de 40 graus e sem água, você sabe do que estou falando.
Comprou alguma coisa e pediu para entregar na favela? Esquece, a empresa que te vendeu não entra em “local perigoso”. Você “se vira” chamando os amigos para subir a ladeira ou escaria com a mercadoria que deixaram no pé do morro.
Seus amigos, todos que se criaram com você, infelizmente nem todos tiveram a mesma sorte de estar lendo esse texto, não tiveram a oportunidade de estudar e de sonhar. E não venha me dizer que foi por falta de vontade, existem casos e casos, eu poderia falar aqui de casos de mães que criaram seus 11 filhos e todos se formaram, construíram famílias e moram muito bem na favela, e, também, poderia falar de situações onde as piores coisas aconteceram.
Mas, aonde eu quero chegar com tudo isso? Quero te dizer que se passaram 31 anos da minha vida e nada mudou, hoje meu filho, não pode sair de casa, não é todo dia que ele tem aula, não tem curso para ele fazer, tem tiroteio de manhã, tarde e a noite. O dia das crianças é amanhã, em outros tempos esse dia já estava programado com várias festas dentro da favela. Como vou deixar meu filho na rua, sabendo que a qualquer momento ele pode ser o alvo.
Vou te contar um pequeno relato de uma conhecida
Eram 07:00 da manhã, ela estava grávida de 8 meses e foi acordada ao som de tiros, a polícia, revistava a casa dos moradores, e diante do susto ela sentiu sua barriga dura e um líquido saindo. Seu companheiro assutado correu para a janela, para ver se tinha como levar sua esposa para o hospital, sem luz na favela, sem água, um fuzil foi apontado em sua direção e um grito esbravejava: entra e sai da janela morador, tá querendo o quê? e seu companheiro respondeu: minha esposa está gravida e está passando mal e o policial respondeu: eu não sou médico! agora entra antes que eu vá ai e faça você calar a boca. O o medo só aumentava com aquela situação, pois sabemos que quando a polícia entra na casa do morador revira tudo, mexe em tudo e faz o que bem entende. Afinal, você vai “peitar” um policial dentro da favela num beco, na sua casa e com o fuzil na sua cara?
A favela parece que não tem voz, ela grita, implora, suplica por socorro e não adianta. A mudança é interessante para quem? Apenas para nós, moradores das favelas. Quem diz nos representar não quer investir, pois sabe que somos um gigante adormecido, e quando a favela acordar e se unir faremos uma verdadeira revolução. Somos mais fortes do que imaginamos.
Aprendemos na prática a sobreviver e resistir. Não podemos parar, essa guerra que é paga com o sangue de inocentes precisa acabar, o foco não é a favela, o foco está na máquina do Estado, e ela que determina. Por isso, temos o dever de mudar essa situação, não dá para começar do zero, mas dá para cicatrizar essa ferida exposta.
Precisamos de respostas e queremos saber quem matou os nossos. Quem matou Amarildo, Marielle, Eduardo, Cláudia, entre outros que não são noticiados?
Precisamos de solução, precisamos de educação, precisamos viver!