O som estridente de tiros de fuzil e o barulhento vôo rasante dos helicópteros da polícia nos últimos meses têm anunciado um risco a mais aos moradores de favela. Isso porque a medida mais eficiente contra a Covid-19, o afastamento social, se torna impossível de ser realizado durante um tiroteio.
Em uma tentativa de resguardar a vida de milhares de residentes das favelas, o Superior Tribunal Federal (STF) proibiu operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia do novo coronavírus. Em sua decisão, o relator da ação, ministro Luiz Edson Fachin, chegou a mencionar a operação policial realizada em maio, no Complexo do Alemão. Na ocasião, mais de 13 pessoas morreram e houve a interrupção de energia elétrica por mais de 24h. Além do caso do menino João Pedro, 13, morto em operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio.
Apesar da medida judicial, a plataforma Fogo Cruzado registrou cerca de 99 tiroteios em favelas cariocas com a presença de agentes de segurança, no período de 5 de junho, quando houve a primeira liminar sobre o caso, até a última quinta-feira (24), quando a decisão final do STF completou 50 dias.
Aglomeração, medo e tiroteio
No Jacarezinho, favela da Zona Norte do Rio, uma operação policial, realizada no dia 9 de maio, quase dois meses após a pandemia ser decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), causou aglomeração de moradores que buscavam se abrigar dos tiros e levou medo e pânico a pacientes de Covid-19 em recuperação.
Um dos moradores chegou a ter sua casa invadida por agentes de segurança armados que usaram a laje como base de tiros. “Eu acordei com o barulho do tiroteio! Meu filho estava dormindo no quarto e minha mãe, que estava com Covid-19 e é do grupo de risco, ouviu um barulho e foi ver o que era. Quando ela abriu a porta, um policial apontou o fuzil pra cara dela e mandou ela ficar quieta. Ela entrou, com muito medo, e eles ficaram atirando da nossa laje”, lembra a moradora, que prefere não ser identificada. Segundo ela, sua mãe é diabética, tem pressão alta e fazia repouso em casa por causa dos sintomas da Covid-19. “Eles colocaram a vida da minha mãe em risco com o susto que ela levou, ainda mais estando tão debilitada. A minha vida e a do meu filho também porque se eles estavam atirando da nossa casa, nós viramos alvo”, protesta a moradora.
Corriqueiramente, a atuação das forças de segurança no Rio de Janeiro coloca em risco a vida dos moradores de favelas. Até quem lida diretamente com a saúde fica atordoado diante da perplexidade da situação, como declara a médica que atua há cinco anos na Clínica da Família Anthídio Dias, Rita Helena, ao documentário do LabJaca, um coletivo de narrativas do Jacarezinho. “Aconteceu aqui uma operação policial e o que a gente fez foi pegar todas as pessoas que estavam na clínica e colocar no espaço que a gente entende como mais protegido da bala, que nunca é perdida, né? Mas, naquele momento, esquece a pandemia! O que a gente queria era que as pessoas sobrevivessem àquela situação”, explica.
Na entrevista ao coletivo, Rita lembra ainda uma fala inusitada de um dos pacientes. “Eu achei que durante a pandemia as operações policiais fossem parar porque não dá pra levar mais gente para os hospitais. Mas se a gente morrer, que diferença faz o motivo?”.
Para o Coronel Frederico Caldas, ex-comandante das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), a decisão do STF extrapola a esfera judicial. “A intromissão do Supremo Tribunal Federal na segurança pública do Rio de Janeiro não é só um fato inédito e extremo, mas, também, totalmente fora de propósito. Parte do princípio de que a polícia foi feita pra matar ou que os gestores da segurança pública são incompetentes. Por mais que possa falhar o mecanismo de controle externo das polícias, feito pelo Ministério Público, nada justifica essa intromissão do STF numa área onde quem decide está tão distante da realidade”.
O ex-comandante afirma ainda que esse é “um dilema muito difícil de resolver somente pela ótica da polícia”, e que, nessa situação, “é preciso que haja políticas públicas capazes de resgatar essa dívida histórica com a população que vive oprimida pela violência nas comunidades”.
Um estudo realizado pela Rede de Observatório de Segurança, com dados do Instituto de Segurança Pública do Rio, aponta que a decisão do STF de proibir operações policiais em favelas do Rio não só não atrapalhou o combate à criminalidade, como reduziu os casos de mortes por violência no estado. “Redução de mortes pela polícia no RJ depois da liminar da Suprema Corte: a soma dos três meses depois da liminar é menor do que um único mês antes da cautelar do STF”, escreve a cientista social e coordenadora do Observatório, Silvia Ramos
Além disso, cerca de 92 pesquisadores de segurança pública assinaram uma carta-manifesto em apoio à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Número 635, conhecida como ADPF das Favelas pela Vida. Mas, apesar da determinação, em algumas favelas do Rio, a polícia segue enfrentando a decisão suprema da justiça e realizando operações policiais sem cumprir as determinações obrigatórias. Aos moradores de favelas do Rio, resta denunciar e aguardar por dias melhores.
Esta matéria foi produzida com apoio do Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo do Google News Initiative.
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