Democracia ou criminalização da pobreza

 

Guilherme Vargues

Em recente pesquisa rumo à sucessão municipal da cidade do Rio de Janeiro, o apresentador Wagner Montes aparece como possível presença no segundo turno. Alinhado com um discurso bastante "linha dura" sobre a atuação policial sua ascensão eleitoral revela parte do sentimento, por parte da população, de que as constantes medidas de criminalização da pobreza continuam valendo como estratégia de manutenção da ordem social.

Esse clima toma parte da classe média e também de comunidades periféricas hoje controladas por milícias envolvidas com ex-policiais. Passando por cima dos direitos humanos, esquecendo o combate a erradicação da pobreza, os governos vão pouco a pouco construindo um clima de barbárie urbana, estimulando a desconfiança entre os cidadãos e o desaparecimento de um público compartilhado, isto é, um Estado que incorpore de maneira democrática e eqüitativa os seus cidadãos.

A ideologia da trama urbana segue falsificando as verdadeiras causas do problema das metrópoles de todo o planeta e no Rio de Janeiro não é diferente. Aqui tratamos o problema com medidas paliativas de conteúdo fortemente discriminatório, isto é, ao invés de atacar o processo de reprodução da pobreza e das desigualdades sociais, reparando as desigualdades no acesso aos bens públicos, ao invés de alargar os espaços de democracia participativa, o Estado, defendendo seus interesses hegemônicos, decreta guerra aos pobres.

Essa passagem fica nítida na comparação, feita pelo atual governador do Estado, entre legalização do aborto e diminuição da natalidade de "marginais" urbanos. Com menor presença do Estado não se planeja e não se oferece alternativas fiáveis de mobilidade social a um jovem favelado, entretanto aqui se trata do problema eliminando o possível infrator do futuro.

Estamos nos filmes conspiratórios onde máquinas previam crimes e a polícia agia prendendo o acusado antes de o crime acontecer. A presença do Estado nas periferias cariocas é de capitão do mato, os mocambos precisam estar em ordem e não podem construir ameaça ao poder constituído. A previsão de que um sujeito pode ser infrator, nas favelas cariocas, é de tom quase lombrosiana. Uma revista de rotina numa rua pela madrugada carioca, terá encostada no muro tipos físicos bastante conhecidos por nós, os mais pobres, negros e nordestinos.

Então matamos a charada, o que podemos esperar dos jovens favelados além de que eles se insiram no crime. Já que é este o destino vamos colocar polícia em cima desses excomungados da cidade. Bandido nasce mau e pronto, por incrível que pareça a atrocidade da vida a qual são expostos os milhares de moradores de favelas, aqui, não é levada em conta.

A humilhação constante, o desemprego, a falta de condições dignas de moradia, o enfraquecimento dos valores comunitários, o desejo do reconhecimento são valores muito mais sérios do que teorias "científicas" da criminalidade. A verdade é que não se fala nisso, mas na verdade esvaziando a crítica e transformando o que é social em natural se enxerga o problema urbano como problema policial. Dessa maneira se criminaliza a pobreza deixando de levar em conta quais são os fatores determinantes do clima de barbárie urbana que vivemos.

Aos chamados "cidadãos de bem" das favelas, aqueles que não se envolvem diretamente com a trama da violência, restam as igrejas evangélicas e seus candidatos corruptos e fundamentalistas, restam as ongs e toda a sua "diversidade", restam os governos e toda a sua inoperância. Nesse quadro de alienação e desamparo, o trágico resultado é hora aquiescência, hora barbárie, cada um por si com Estado para reprimir. Pactuar a cidade é realizar inclusão social efetiva, ampliar o acesso aos bens públicos e dar sentido coletivo para a intervenção urbana, que se dará nos marcos de nosso tempo com democracia participativa, isto é, democracia no acesso aos serviços públicos e participação no campo das decisões de Estado, na ampliação radical dos espaços de participação política, na distribuição do poder aos espaços populares.

A cidade do capital não admite democracia, só fetiche dela, soltando mentiras e construindo falsas verdades sobre a dinâmica da vida social, implodindo a possibilidade de uma vida urbana democrática. A cidade do futuro não precisa de heróis e nem de demagogias assistenciais, precisa de um movimento coletivo de todos aqueles que foram deixados de fora de seu banquete, precisa de intervenção para que o velho se vá e que surja o novo, modificando estruturalmente as relações de poder que culminam em violenta e humilhante exclusão social na cidade do Rio de Janeiro.

 

Guilherme Vargues é historiador e doutorando em sociologia pelo Iuperj.