Roberta Duboc Pedrinha*                

Fazem dois anos e meio que ocorreu a mega operação policial no Complexo do Alemão, conhecida como Chacina do Pan. Foi em 27 de Junho de 2007, que se firmou uma parceria entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro (através da Polícia Civil e Militar) e o Governo Federal (através da Força Nacional de Segurança). O efetivo policial contou com um total de 1.350 homens, utilizando 1080 fuzis, 180.000 balas, com duração de aproximadamente 8 horas. Esta intervenção culminou, em um único dia, com 19 pessoas mortas e 62 pessoas feridas por arma de fogo.

                        Cabe destacar o panorama geral de letalidade que se delineia no cenário carioca. Os elevados índices de homicídios corroboram o entendimento de que a Polícia brasileira é a que mais mata no mundo, em torno de 3 pessoas por dia. Trata-se de uma Polícia que produz algo em torno de 10 a 20 % do número total de homicídios do Estado. A cifra de execuções produzidas pela Polícia é eclipsada no instrumento da ditadura militar, intitulado de auto de resistência. Em 2007, no Estado do Rio de Janeiro, o número foi de 1.330 autos de resistência; e já em 2008, o número foi de 1.134 autos de resistência, ou seja, de homicídios. Vale acompanhar os últimos dados do Instituo de Segurança Pública, divulgados em 29.10.2009, que denotam os números do triênio: Julho, Agosto e Setembro de 2009, que correspondem a um incremento de 32,3% do total de autos de resistência, se comparados ao mesmo triênio do ano passado. Cumpre destacar a média do DATASUS, que de 1979 a 2009 registrou, nestes 30 anos, um número perto de 1 milhão de homicídios.

                   O modelo de política criminal da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro é marcado pelo confronto, pela repressão por operações bélicas, que transformam os opositores em inimigos, que devem ser eliminados. Assim, as atividades de enfrentamento dos policiais são direcionadas ao alvo, que se subsume ao estereótipo do “traficante de drogas”, como se indivíduos suspeitos de integrar essa categoria pudessem ser exterminados, como se os policiais obtivessem um salvo conduto, na medida em que as mortes dos traficantes são respaldadas pela sociedade, e, portanto, legitimadas. Cabe frisar que tais práticas de guerra transcorrem nas favelas, lugares de remanescência do esquadrinhamento do mercado, cartografia do espaço do rebotalho, estando seus moradores, consumidores falhos que são, com suas vidas nuas, inscritos na matabilidade.

                  

E agora, me lembro bem disso, especialmente, quando de minha segunda visita após a operação, ao Complexo do Alemão, na condição de Coordenadora de Sistema Penitenciário e Segurança Pública da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, em 30 de Junho de 2007, particularmente impactante para toda a nossa equipe. Transcorreu durante todo um longo dia, em que os casebres na rua principal e nas ruelas estreitas estavam atassalhados por projéteis, que ora salpicavam as paredes e lá se instavam, ora rasgavam largas gretas e orifícios. Os rastros de sangue enodoavam a paisagem, ora misturados ao chão de terra, lambidos por cachorros esfarrapados, ora aderidos ao acimentado das calçadas ou incrustados nos tijolos dos barracos. A angústia e o desespero ainda estavam estampados nos olhos dos moradores. Ouvimos dezenas de  emocionados depoimentos de vítimas, familiares de vítimas e testemunhas, tomados a termo na sede da Associação dos Moradores, que narravam extorsões, roubos, furtos, ameaças, constrangimentos ilegais, lesões corporais e homicídios. Percorremos toda a trajetória deslindada pela Polícia, e ao longo dela, interpelamos mais moradores, que relatavam episódios que se repetiam, na íntegra, sucessivamente. Estivemos com dezenas de vítimas ainda feridas, algumas sem nenhuma hospitalização, variavam de crianças a idosos, marcados pela dor. Constatamos a destruição (por projéteis, granadas e fogo) de múltiplas casas, automóveis, móveis e acessórios.

                   Alcançamos o ponto das mais graves denúncias, no topo do morro, a região da Grota. Refizemos os lugares denunciados pela população como das execuções sumárias, perpetradas pela Polícia, ainda havia resquício de sangue e de massa cefálica em certos lugares. Concatenamos os relatos dos moradores sobre as mortes na operação com a apreciação das fotografias extra-oficiais, que nos foram apresentadas. Presenciamos jovens armados, em motocicletas ou a pé, sem camisa, espraiados pelo morro, atentos a cada movimento nosso. Não notamos sequer um único policial presente. Tinham apenas, nas suas cercanias, nas entradas de acesso, à subida do morro, alguns carros e integrantes da Força Nacional, com pesado armamento de guerra, estáticos, à espreita. Tudo apontava a ineficácia da operação de “combate à criminalidade”. Presenciamos lojas fechadas, crianças sem estudar, trabalhadores faltando ao emprego, mulheres chorando. Era uma massa de corpos vivos dilacerados pelo medo, tomados pelo sofrimento. O cheiro da morte ainda estava no ar. Saímos à noite da Favela do Complexo do Alemão, descemos o morro no escuro, em silêncio e sem olhar para traz.

                        O desfecho da mega operação policial no Complexo do Alemão não alcançou sequer a Justiça Criminal. A notícia crime, com todas as narrativas e depoimentos, enviada pela CDH da OAB ao Ministério Público não se transformou em denúncia. O inquérito foi arquivado. Diante de tamanha gravidade, temos que nos ligar. Temos que acompanhar cuidadosamente os pronunciamentos oficiais que partiram do Governo, com expressões como: “não se faz bolo sem quebrar ovos”, “o bom remédio é amargo”, “a bala é do bem”, “mulher favelada é fábrica de produzir marginal”, “a PM é o melhor inseticida social”. Pois, não somente os moradores do Complexo do Alemão devem estar atentos, os mais do que 65.000 apontados pelo IBGE em 2000, devem se aproximar dos 150.000 habitantes; porém, verdadeiramente, toda a sociedade brasileira. Cabe a todos os brasileiros manterem-se em permanente indignação, e estarem atentos para o que está por vir. Está na hora dos nossos companheiros favelados ganharem voz, soltarem seu grito, para ecoar por toda a sociedade, antes que outra chacina ocorra, e para que não se tenha uma profecia anunciada da “Chacina da Copa”.

*Membro do conselho editorial do jornal A VOZ DA FAVELA