Em abril de 2021, os integrantes da Trupe Ortaética de Teatro sofreram um baque ao serem informados do despejo iminente de sua sede na Capela São Gabriel, localizada na comunidade do Jardim Brasil, Jaçanã, distrito da capital paulista.
O grupo atuava em cooperação com a igreja católica em projetos comunitários, porém, após uma mudança administrativa na igreja, os artistas-ativistas perdem o local de atuação. Lá deixam milhares de livros, além de pertences de valor para o coletivo.
Tiago Ortaet, criador do grupo, se comunica com a igreja, buscando manter a cooperação para o funcionamento dos projetos sociais. Nesse processo, ele chega a se comunicar até mesmo com o Vaticano, através de cartas.
O local onde o grupo atuava, o Jardim Brasil, é uma região de alta vulnerabilidade social. Muitos participantes da trupe teatral se indignaram, entre eles Adalberto Vieira, ou Beto: “Complicado fazerem isso, principalmente num momento tão triste quanto esse, de pandemia e desemprego”. A notícia do despejo veio em momento crítico para a cidade, o país e o mundo, com o coronavírus matando diária e incontrolavelmente.
Outra cidadã que também se aborreceu com a notícia do despejo foi Fabiana de Jesus, moradora do Jardim Brasil: “Aqui é uma comunidade, eles estão ajudando as pessoas carentes, viu? Estão fazendo as coisas comunitárias, auxiliando a gente que está sem trabalhar, sem vacina”.
O despejo da igreja
O projeto trabalhava em conjunto com o padre João Luiz Miqueletti, que sediava a trupe teatral nos salões disponíveis da paróquia Santa Terezinha do Menino Jesus, desde 2019.
A parceria inaugurou uma biblioteca comunitária e tinha planos para implantar um cursinho pré-vestibular gratuito para jovens que desejassem ingressar em uma universidade.
Porém, em abril de 2021 o padre foi transferido para outra igreja e, em seu lugar, o pároco Francisco Ferreira da Silva assumiu o comando. Este surpreendeu o grupo teatral, pedindo a saída, com urgência, das dependências da igreja.
Marcia, moradora da região, declara que “gostaria que não acabasse esse projeto, porque precisa, tem muita gente necessitada. Nós temos um monte de crianças e famílias com fome, desamparadas, não parem, porque a gente precisa tanto…”. Mas parou.
Motivos, alegações, negações
Integrantes da Casa Ortaética de Humanidades contaram que, para justificar o despejo, o padre havia dito que precisava de dinheiro, não de projetos culturais ou sociais. Teria dito ainda que quem quisesse reforço escolar, que procurasse a escola, a igreja não seria o lugar ideal. Quanto aos livros que estavam sendo juntados para a biblioteca comunitária, não serviriam para nada, pois, hoje em dia, ninguém mais se importa com eles.
O padre nega: “Essas alegações são infundadas e inverídicas, muito pelo contrário. Procuro vivenciar com humildade a pobreza evangélica”. Ele afirmou também que tem um projeto pessoal para a criação de uma biblioteca comunitária, que auxiliará jovens de periferia.
Uma questão de fé – no trabalho social
Diante do despejo inevitável, o líder do grupo teatral fez contato com o Arcebispo da cidade de São Paulo e com o Vaticano, através de cartas, denunciando a situação. O grupo também realizou um abaixo assinado com os moradores da região e produziu um minidocumentário para reforçar o protesto.
Em audiência, o bispo Dom Jorge Pierozan afirmou que, por ele, não haveria problema da permanência no local, mas que a retirada era uma determinação de cima, das altas castas da igreja.
Através desta audiência e do contato com a igreja feito por carta, o grupo teatral conseguiu um prazo estendido, de 2021 até o início de 2022, resolvendo o problema temporariamente.
Contudo, devido à falta de condições financeiras, o grupo não teve condições de retirar os objetos utilizados no trabalho artístico-social. Tiago Ortaet ainda ressalta a ironia da situação ao citar o Papa Francisco, em declaração dada uma semana antes do despejo do grupo.
A fala do pontífice dizia respeito à necessidade de todas as igrejas católicas colaborarem com projetos de bem-estar social. “Se a igreja renegar os pobres, deixa de ser de Jesus, torna-se elite moral ou intelectual”.
A carta-apelo ao bispo
“Prezado Dom Jorge, quem vos escreve é um professor de escola pública, militante dos direitos humanos, artista, escritor, católico, engajado desde a adolescência pelas causas sociais, líder comunitário, ativista social e de espírito essencialmente coletivo.”
Assim começa a carta enviada por Tiago Ortaet ao bispo. Ele prossegue revelando os problemas aos quais o projeto artístico-social foi submetido e as condições em que se encontra.
“Na semana passada fomos surpreendidos com a ligação do novo padre da paróquia, determinando o imediato DESPEJO do projeto realizado no salão”.
Após explicar a situação, ele argumenta em favor do projeto:
“Nossa casa cultural é a configuração de um sonho coletivo, por um país mais justo, humano e igualitário”.
O que foi deixado na igreja?
Entre os pertences deixados pelo grupo na igreja estão os mais de 2.000 livros que comporiam a biblioteca comunitária.
Muitos são de poesia, contos, ficção, história da arte, culinária, direitos-humanos, autoajuda, obras clássicas e literatura infantil.
Outros objetos deixados são equipamentos de cozinha, usados na iniciativa de fornecimento de alimentação na pandemia; dois armários; mais de 300 peças de roupas; ainda araras, cabides, brinquedos, tatames, objetos cênicos e instrumentos musicais.
Ficou para trás também um piano utilizado nas aulas de música do projeto.
Trancados – do lado de fora
O grupo não possui mais a chave do local, apesar de poder retirar suas coisas a qualquer momento, segundo foram informados. Contudo, nesse tempo de espera aconteceram dois furtos.
Objetos pertencentes ao projeto foram roubados, entre eles uma televisão; uma bicicleta profissional, que seria parte de uma rifa organizada pelo grupo; computadores e uma caixa de som.
Na segunda ocorrência, o grupo não foi informado dos objetos que supostamente teriam sido furtados, mas foram avisados pelo atual padre, Sulliver Rodrigues do Prado, que seus pertences seriam movidos para um “canto” do local.
Trajetória social do projeto
A Trupe Ortaética de Teatro é um coletivo popular criado em 2003 pelo professor de ensino público Tiago Ortaet, em parceria com amigos e alunos.
O projeto teve início no pátio de uma escola pública da região de Guarulhos, como uma maneira de democratizar o acesso às artes, principalmente ao teatro.
O grupo se sustentou pelas mãos de seus criadores, e principalmente de Tiago Ortaet, em quase toda sua trajetória de 20 anos. Sobreviveu de esporádicos apoios de outras organizações, e apenas um incentivo mais longo, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes, entre 2009 e 2011.
O coletivo funciona em Guarulhos e em São Paulo, onde trabalhou com milhares de pessoas, diretamente. Seus principais participantes são jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade, como Samara Rita.
“A trupe foi muito importante para mim, quando tive problemas. Sempre fui muito tímida, me ajudou muito com entrevistas de emprego”.
A integrante da trupe, Célia Lira, advogada e voluntaria diz o seguinte: “Eu faço parte da trupe Ortaética desde que o meu filho era criança, e hoje ele já é papai. Nós alimentamos o espírito, mas também o corpo, ajudando nossos irmãos em situação de rua”.
Em 2019, o projeto se dividiu em dois, a trupe de teatro e o projeto que acontecia com a cooperação da igreja católica do Jardim Brasil, chamado Casa Ortaética de Humanidades. Esse último, sediou o movimento apetite, responsável pela distribuição das marmitas e pela arrecadação de livros para a biblioteca comunitária.
Movimento Apetite
Um dos desdobramentos recentes da atuação social da trupe teatral foi o Movimento Apetite, responsável pela distribuição de marmitas e refeições para necessitados no Jardim Brasil.
O movimento combateu a insegurança alimentar durante a pandemia fornecendo marmitas gratuitas para mais de 400 pessoas diariamente. Entre elas, diversas famílias, principalmente as que passavam por desemprego.
As entregas eram feitas pelos próprios voluntários e os alimentos, preparados com ingredientes de doações. Rafaela Machado, chefe de cozinha e voluntária do projeto, diz que “a gente ajudava a comunidade não só trazendo alimento, mas combatendo a fome.”
O futuro a Deus pertence?
O projeto atua com a metodologia do “teatro do oprimido”, proposta pelo teatrólogo Augusto Boal, buscando democratizar o acesso às artes, fornecendo atividades de integração, como aulas e oficinas.
O professor Marcelo Nascimento, integrante do projeto reclama que “a casa está correndo risco de ser fechada, de ser entregue a outras mãos que não querem fazer trabalhos sociais, em especial com as pessoas em situação de rua”.
O grupo continua buscando uma sede fixa, e nesse meio tempo, reúne recursos para retirar seus pertences deixados na igreja. Parte do projeto operou por alguns meses em uma universidade particular em Guarulhos, apenas como oficina de teatro.
Mesmo com todas as dificuldades, parte da atividade teatral não parou. Desde o ano passado, o grupo ensaia uma peça sobre violência doméstica que pretende apresentar em julho, Marias do Mundo.
No início de março, realizaram apresentação preliminar, com algumas cenas do espetáculo, para mais de 400 alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) em Guarulhos.
Aos trancos e barrancos, continuam procurando um local para as atividades.
20 anos de trajetória vitoriosa
Em duas décadas, a história da Trupe Ortaética de Teatro coleciona diversos prêmios, parcerias e reconhecimento internacional. Tendo sido sediado em escolas públicas, universidades e centros culturais.
O projeto social foi palco para palestras e seminários em sete países da América Latina, Europa e África, tendo alcançado cerca de 50.000 pessoas. Apenas em Guarulhos e São Paulo, mais de 10.000 participaram das atividades oferecidas em 20 anos.
A trupe realizou projetos em diferentes linguagens como dança, performance, teatro de rua, cinema, sarau de poesias, carnaval, exposições e fotografia.
O grupo se orgulha de produzir conteúdo com representatividade, pautas identitárias e inclusão como sua prioridade.
Patrícia Hilário, produtora cultural e voluntária do grupo, diz que tem muito orgulho de participar dos projetos da Casa Ortaética em ações culturais, especialmente “cursos de capoeira, para mulheres”, porque “a gente consegue atender toda a negritude”.
Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.
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