Estudos recentes destacam a participação indígena para construção do que conhecemos como Amazônia. A colaboração entre sistemas de conhecimento indígena e ocidental desponta como uma estratégia essencial para a conservação e sustentabilidade na Amazônia. Enquanto a ciência ocidental historicamente negligenciou saberes tradicionais, iniciativas que promovem o diálogo intercultural começam a evidenciar como práticas indígenas, baseadas em relações profundas com a natureza, podem complementar e transformar abordagens conservacionistas.

Artigo recente publicado na Science destaca que os territórios indígenas preservam boa parte das áreas naturais remanescentes, contribuindo significativamente para a proteção da biodiversidade e a mitigação das mudanças climáticas.

Justino Rezende – [Imagem: Reprodução / Arquivo Pessoal]

“Durante muito tempo, a ciência ocidental não reconhecia os saberes dos nossos ancestrais como ciência. Isso gerava uma sensação de perda de tempo ao tentar dialogar, por nosso conhecimento ser dado como inferior ou ligado apenas à espiritualidade”, afirma Justino Rezende, indígena do povo Utãpinopona-Tuyuka, doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e co-autor do artigo. Para ele, a ciência indígena é validada por suas próprias práticas e resultados, construídos ao longo de séculos em aldeias, festas e rituais. “Eu dizia para mim mesmo: isso é ciência. Não vou perder tempo com quem acha que não é. Mas a Carolina Levis me incentivou a continuar. Ela acreditava no valor desse conhecimento, que precisamos discuti-lo”, continua. 

“Hoje, com a publicação do artigo na Science, vejo que nosso esforço foi uma ponte entre nossos sábios e a ciência ocidental, mostrando que nossos saberes têm muito a contribuir”, afirma Justino.

Além do reconhecimento científico, o diálogo entre conhecimentos indígenas e ocidentais aponta para transformações práticas na gestão ambiental. No Alto Rio Negro, por exemplo, comunidades indígenas têm aplicado sistemas de manejo baseados em ciclos naturais, como as constelações e a migração de espécies, práticas que desafiam a visão antropocêntrica predominante na ciência ocidental. “Nossos rituais não apenas celebram a natureza, mas regulam relações com os seres que habitam a floresta, garantindo equilíbrio e saúde ao ecossistema”, explica o pesquisador. Estudos mostram que essas práticas ajudam a preservar áreas de alta biodiversidade e podem inspirar novas abordagens de conservação, mais integradas e sustentáveis.

Natureza como sujeito

Para os povos indígenas, a natureza não é composta de objetos passivos, mas de “gentes” — seres dotados de agência, dignidade e direitos. Rezende explica que essa visão transforma a relação com o meio ambiente: “Se eu entendo que a floresta, os rios, as árvores e até as estrelas são gente, vou diminuir a depredação. Porque eles também têm limites, e estamos vendo isso agora com as mudanças climáticas e o super aquecimento.” Essa perspectiva de respeito e reciprocidade oferece uma abordagem alternativa à visão ocidental, muitas vezes centrada no uso utilitarista dos recursos naturais.

Essa compreensão é enraizada em práticas ancestrais que conectam ciclos naturais e cerimônias culturais. Justino descreve como seus avós observavam constelações e migrações de peixes para determinar o momento de realizar rituais que assegurassem o equilíbrio entre humanos e outros seres. “Eles sabiam que esses seres também têm suas viagens, visitam parentes e levam resultados de trabalho, assim como nós”, relata. Para ele, a ciência indígena se diferencia ao integrar cosmologia e ecologia, rompendo com a dicotomia ocidental entre cultura e natureza.

O reconhecimento da natureza como sujeito ganha força em contextos acadêmicos e internacionais, como a recente publicação do artigo na Science. O doutor destaca a importância desse marco: “Quando uma revista histórica legitima um artigo, ela também está dando seu aval para que a ciência indígena dialogue com a ocidental. É o início de muitas novas perspectivas.” Ele acredita que, ao legitimar esses conhecimentos, a ciência ocidental pode aprender a superar a visão antropocêntrica e abrir caminhos para uma coexistência mais harmoniosa com o planeta.

Para Carolina Levis, pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ecologia, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coautora, o diálogo exige mais que simples boa vontade; demanda um deslocamento profundo de perspectiva. “É preciso reconhecer que não existe apenas um sistema de conhecimento válido. 

Carolina Levis – [Imagem: Reprodução / Arquivo pessoal]

Os saberes indígenas são validados pelas próprias comunidades e territórios, por especialistas indígenas que vivem essa realidade”, explica. Esse respeito permite que se enxerguem as diferenças como riquezas e não como hierarquias, abrindo espaço para confluências. “Esse entendimento pode transformar não apenas práticas de conservação, mas a própria forma como compreendemos a relação entre humanos e o mundo natural”, afirma Carolina.

Educação e valorização indígena

A integração dos saberes indígenas nos sistemas educacionais brasileiros ainda enfrenta muitos desafios, especialmente no que diz respeito à criação de currículos que reflitam a diversidade cultural e linguística desses povos. Embora existam programas específicos, como as escolas indígenas com currículos próprios, os materiais didáticos frequentemente chegam em língua portuguesa, ignorando as línguas locais. “Os professores têm o exercício de traduzir e construir seus próprios materiais”, explica Carolina Levis, ressaltando que essa lacuna dificulta a transmissão eficaz dos conhecimentos. Além disso, a formação de professores não indígenas carece de conteúdos que valorizem e expliquem as práticas e saberes indígenas.

“Ainda estamos muito longe de ter um sistema educacional que incorpore as práticas e teorias indígenas”, aponta Carolina. 

Apesar de iniciativas como a licenciatura intercultural indígena na Universidade Federal de Santa Catarina, que conta com professores indígenas, a maioria das instituições de ensino superior ainda não incorpora essa perspectiva em suas grades curriculares, perpetuando uma lacuna que impede o entendimento e a valorização dos sistemas de conhecimento dos povos originários.

A transmissão de saberes, no entanto, continua sendo uma prática central dentro das comunidades indígenas. “Se os especialistas indígenas não estiverem mais aqui para ensinar, não haverá mais a perpetuação e a produção desses conhecimentos”, alerta Carolina. Esse modelo, que conecta o aprendizado às experiências do cotidiano e às relações com o meio ambiente, demonstra um potencial transformador. Contudo, sem esforços para fortalecer a produção de materiais específicos e incluir os conhecimentos indígenas em escolas e universidades, a perpetuação dessas práticas pode ser ameaçada, comprometendo tanto a preservação cultural quanto a contribuição desses saberes para um futuro sustentável.

Para ela, o processo de mergulhar na realidade do Alto Rio Negro representou um deslocamento paradigmático, desafiando as noções tradicionais que moldaram sua formação acadêmica. “Parece que entrei em um portal, um outro mundo”, reflete a pesquisadora, ao destacar como as práticas indígenas, fundamentadas no respeito e na negociação com outros seres — como os Encantados, o Curupira e outros espíritos da floresta —, oferecem uma visão holística e relacional da natureza.