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Créditos – Arte: Julianne Gouveia e Suellen Sampaio / Foto: Julianne Gouveia

Nilo Batista: “Neste momento, há uma crise de comando na segurança. Hoje, todo mundo enxerga esse projeto como completamente inapto para atingir os seus objetivos”

 

Nilo Batista, ex-governador do Rio de Janeiro (1994-1995), advogado, professor de direito penal e fundador do Instituto Carioca da Criminologia (ICC). Nesta entrevista, ele comenta a crise da política de segurança estadual e os limites do projeto das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs.

 

ANF – Podemos começar com um balanço dos oito anos de UPP.

Nilo Batista – Esses oito anos foram um desastre para os pobres. Nós, do ICC, fomos contra esse projeto desde o início e de maneira isolada naquele momento. Vera [Malaguti] escreveu um texto chamado “O Alemão é muito mais complexo”, desnudando o que havia de publicitário naquela iniciativa. É claro que era um desastre, porque simplesmente foi feita uma intervenção direcionada às favelas onde havia a presença do Comando Vermelho (CV). Chegou a pegar tão mal que fizeram também na Rocinha. Isso tinha dois efeitos. Primeiro, era uma desestruturação das economias informais locais. Se olharmos o entorno das favelas, existem essas economias informais, que não se restringem absolutamente ao comércio varejista de drogas ilícitas. Esse é um aspecto dessa política criminal fracassada, violenta, genocida. Mas não é só isso. Há na favela problemas que, num olhar menos preconceituoso, podem ser identificados como problemas públicos. O transporte, por exemplo, seja o mototáxi, sejam os transportes ilegais que vão até a favela. É um serviço ilegal, mas que atende a um demanda pública. Outra coisa: o transporte de gás, que é um problema de abastecimento. Há a questão do “gato”, que também tem a ver com o acesso a bens culturais cujos preços são proibitivos para essa população. Eu sempre lembro que, quando a distribuidora de energia era uma empresa pública, existia um setor que fazia essa interface com os “gatos” comunitários. Sabia-se que existia ali um problema social, não apenas criminal.

 

Eu ouvi de vários teóricos, assessores, consultores, que era uma “polícia de proximidade”. Não, isso é polícia de conflito.

 

O ponto é que essa economia não fica sem dono. O dono, se não for o pessoal de lá, vai ser a milícia. O desenvolvimento das milícias foi paralelo às UPPs. É como se, num ambiente concorrencial, o Estado se dirigisse contra um dos atores, desorganizando esses poderes locais. Isso resulta na desorganização das relações locais. Não é que se deva aceitar tirania de alguns pequenos régulos, mas, às vezes, existia apenas um sistema mais ou menos acomodado e é isso que foi rompido. Ou era isso ou toda essa economia fica para a própria UPP, como também aconteceu muito. Eu ouvi de vários teóricos, assessores, consultores, que era uma “polícia de proximidade”. Não, isso é polícia de conflito. A prática de contingentes policiais militares em favelas não é respeitosa das garantias individuais. É uma prática na qual há violações aos domicílios, à integridade corporal. Isso tudo é sabido. É claro que aquilo ali ia ruir, e com efeitos danosos. Ao mesmo tempo, a multiplicação de pessoal na área de segurança, a policização dos guardas municipais, seguranças privadas, tudo isso foi um processo que se deu no Rio de Janeiro e hoje vivemos um quadro de desorganização completa. Neste momento, há uma crise de comando na segurança. Hoje todo mundo enxerga esse projeto como completamente inapto para atingir os seus objetivos. Eu me lembro, há muitas décadas, quando era jovem, numa cidade do sul de Minas Gerais, quando o dono de um armazém se feriu com pregos de um caixote e foi tratado, mas não tomou a vacina antitetânica. Quando ele estava morrendo, disse para o médico, já com dificuldade, “agora até um burro sabe que é tétano”.

 

ANF – Se atribui à UPP uma função de fiadora da segurança dos megaeventos. Nesse aspecto ela também é fracassada? O que o senhor acha da relação das UPPs com esse contexto mais geral da cidade?

Nilo Batista – É evidente que o desenho dela procurava criar uma “área verde” – para citar Bagdá –, mas isso também é uma ilusão. É um segurança parcial. A rua segura é a rua usada por todos, como diz Jane Jacobs. Não é por meio do recalque que se pode estabelecer uma cidade com uma sociabilidade menos violenta. Não é esse o caminho. O caminho é a integração. E esse projeto é segregacionista, reafirmador do gueto. Não havia nenhum projeto para integrar a favela. O único projeto era manter os escombros sociais da escravaria controlados.

 

ANF – Ainda sobre o tema da polícia de proximidade. O treinamento dos policiais das UPPs é diferenciado? Como ele pode ser caracterizado?

Nilo Batista – Eu não conheço pormenores desse adestramento. O que se comenta é que ele é muito rápido. Mas, ainda que fosse mais longo, a proposta não é boa. Para os jovens recrutas é uma experiência terrível, uma situação muito difícil para eles. Se a proposta fosse: “Nas UPPs, os policiais não vão ser armados”, talvez não houvesse tiros na UPP. Quando, no governo Brizola, nós fizemos alguns Centros Comunitários de Defesa da Cidadania, eles não se ocupavam da questão do tráfico de drogas. O problema era outro. Se houvesse a questão do uso da força, seria um problema de outras unidades policiais. Os policiais do Centro estavam cuidando de problemas individuais – no bom sentido. Agora, se colocarem um contingente armado que, inevitavelmente, vai se aproximar daquela economia a que eu me referi, e dos conflitos decorrentes dela, ele vai tomar partido e vai querer até uma participação… É jogar a garotada policial em uma missão impossível.

 

Não havia nenhum projeto para integrar a favela. O único projeto era manter os escombros sociais da escravaria controlados.

 

ANF – Há uma intensificação dos conflitos após a instalação das UPPs. Isso pode ser visto até mesmo através da grande mídia…

Nilo Batista – Mas só muito recentemente, porque não dava mais para esconder…

 

ANF – É possível falar que as UPPs são uma continuação dos Destacamentos de Policiamentos Ostensivos (DPO)?

Nilo Batista – Não mudou nada. Fortaleceu um pouco, quantitativamente, o velho DPO. Na época do governo Brizola, ouvimos urbanistas e arquitetos que recomendaram não fazer os Centros Comunitários no meio da favela, mas na “periferia”, no entorno, deixando uma possibilidade de que aquilo fosse também um serviço utilizado por gente que não era da favela. Isso é uma política de integração. Foi um dado urbanístico que incorporamos. Por exemplo, muita gente de Ipanema ia tirar carteira de identidade no Pavão-Pavãozinho. Subia de elevador e ia tirar ali os documentos. Os outros centros eram todos um pouco periféricos, então eles permitiam a integração. Mas esconder as UPPs lá dentro das favelas só reforça a segregação. Também era importante para dar mais visibilidade às atividades policiais. Isso é útil em certas atividades policiais, para que elas possam ser observadas.

 

ANF – Como o senhor vê as perspectivas de continuidade desse modelo?

Nilo Batista – Eu acho que agora todo mundo vê fracasso dele. Há alguns anos, só nós, do ICC, falávamos desse fracasso. Tem que partir para outra; fazer um recuo, reaproveitar esse contingente. Não é assim que se vai obter uma sociabilidade menos violenta. Ao contrário, ela contribuiu enormemente em vários episódios de violência, aqueles que foram revelados… Pode-se imaginar o que é a “cifra oculta” da violência nas UPPs. Durante muito tempo, a grande mídia ocultava tudo. Eu quero ver daqueles jornalistas todos que antes metiam a cara para dar sustentação a esse projeto. Com que cara eles estão agora? Um estudante de jornalismo ou de criminologia que quiser comparar a realidade conflitiva na cidade e o relato jornalístico disso por parte da mídia conservadora do Rio tem um prato cheio. Tudo o que eles mentiram e omitiram aos seus leitores…

 

ANF – E também a pesquisa universitária que tratava disso…

Nilo Batista – Claro, é aquela parte dos cientistas sociais que embarcaram nessa canoa e agora não querem nem ouvir falar dela. Mas estavam lá até muito recentemente. Agora estamos naquela situação da história do médico. Todo mundo está vendo que fracassou. Tem que ter uma alternativa.