Bolsonaro assumiu ontem, 31, seu lado Fernando Henrique Cardoso, que pediu “esqueçam o que eu escrevi”, quando flagrado em atitudes contrárias aos textos por ele assinados quando professor. Como o presidente não é de escrever, deu um cavalo de pau no discurso de “gripezinha”, “resfriadinho” e “histeria dos governadores e da imprensa” e disse com todas as letras em cadeia de rádio e tevê esta noite: “Estamos diante do maior desafio da nossa geração. Minha preocupação sempre foi salvar vidas”.
A breve fala de Bolsonaro soou tão falsa quanto uma improvável menção ao 31 de março de 1964, pretexto da requisição da rede de rádio e tevê. Nas janelas de muitas capitais, nas varandas e nos quintais pelo país afora, panelaços e gritos de “fora Bolsonaro” ecoaram mais alto e mais forte. O presidente dos passeios dominicais e das piadas de mau gosto sobre a pandemia de repente se apequenou e ficou do tamanho do seu ministro Paulo Guedes.
Façamos um teste rápido, “talkey”? Diga o autor desta declaração: “Agradeço e reafirmo a importância da colaboração e a necessária união de todos num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos: Parlamento, Judiciário, governadores, prefeitos e sociedade”.
Rodrigo Maia, Marco Aurélio Melo, Luiz Henrique Mandetta? Acertou quem marcou Jair Bolsonaro, e vai ganhar inteiramente grátis uma dose de vacina contra a influenza no posto de saúde onde a encontrar. A declaração quer dizer que o presidente, afinal, deu o braço a torcer e reconheceu que estava do lado errado da história?
Nada disso. Bolsonaro, seus filhos, o chanceler e muitos ministros da “inteligência” do governo continuam convencidos de que o coronavírus é plano da China para recuperar sua economia que vinha em baixa e infectar o mundo livre. Não são loucos. Donald Trump chama o coronavírus de “vírus chinês”, mas ele tem razões mais fortes e profundas para isso.
O governo chinês não diz oficialmente, mas atribui aos Estados Unidos a entrada do coronavírus no país, e diz até quando aconteceu: nos Jogos Mundiais Militares de setembro do ano passado em Wuhan, onde a delegação americana de 300 pessoas esteve por tempo suficiente para deixar sua lembrança maléfica. Como programado, o resultado começou a surgir nos primeiros meses deste ano.
Se a teoria estiver certa, o tiro saiu pela culatra, Estados Unidos e França têm hoje mais cidadãos infectados do que a China que está em terceiro lugar e vem reduzindo as estatísticas. A Itália, antes principal foco de irradiação da pandemia, agora recolhe seus mortos e seus prejuízos numa dor inimaginável, ajudada por cientistas enviados pelo governo chinês.
Mas, voltando a Bolsonaro, ele disse na televisão, no seu quarto pronunciamento à nação a propósito da pandemia: “Não me valho destas palavras para negar a importância das medidas de prevenção e controle da pandemia, mas para mostrar que, da mesma forma, precisamos pensar nas pessoas mais vulneráveis. Essa tem sido a minha preocupação desde o princípio: o que será do camelô, do ambulante, do vendedor de churrasquinho, da diarista, do ajudante de pedreiro, do caminhoneiro e dos outros autônomos com quem venho mantendo contato durante toda a minha vida pública?”.
Novamente provoco o leitor para dizer se alguma vez teve a chance de ver ao menos uma foto, um flagrante, de Jair Bolsonaro ao lado de camelô, ambulante, vendedor de churrasquinho, diarista, ajudante de pedreiro e dos outros autônomos.
Sabemos todos da vendedora de açaí de Angra dos Reis nomeada para o seu gabinete, mas como ela nunca esteve lá não há fotos dos dois. Sabemos dos cheques do Queiroz para a primeira dama, mas como ele anda sumido há mas de um ano não pudemos confirmar. Este Jair Bolsonaro o brasileiro conhece, os obtusos aplaudem e elogiam – é só ver toda manhã na entrada do Alvorada.
Fato é que o presidente está desgastado dentro e fora da esfera oficial. Sua oposição à política do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é notória e seu desejo íntimo é demiti-lo, quem sabe substituí-lo por Osmar Terra, que é médico e comunga das ideias dos terraplanistas do governo.
O problema é que Mandetta disse que só sai demitido, o que provavelmente será gota d’água que vai afundar o governo, dado o apoio que recebe dos profissionais da saúde no Brasil e no exterior. Em resumo, pesadas todas as informações na balança do poder, o presidente que falou na televisão nesta terça-feira está desacreditado, desgastado, incapaz de manter a coerência dos atos e das palavras à população assustada. Resta identificar quem está realmente no comando do país.