Ato em Curitiba exige respeito às religiões de matriz africana. FOTO: Leonardo Costa

Na entrada da periferia de Campo de Santana, bairro Tatuquara, região sul da grande Curitiba, um templo religioso chama a atenção pela arquitetura lembrando um palácio. Há placas com luzes de led formando o nome Jesus Cristo. Na mesma quadra, um grande barracão com porta singela abriga o terreiro de umbanda Vovó Catarina das Almas. A mesma rua é ainda endereço do Centro Espírita Luz do Evangelho, além de mais duas igrejas neopentecostais.

Ao longo do bairro, assim como por toda Curitiba, é possível ver o grande número de centros religiosos, placas com serviços de cartomancia, búzios, adivinhações, escuta espiritual e diversas outras formas de contato com o místico.

De acordo com a pesquisa Global Religion 2023, produzida pelo instituto Ipsos, nove em cada dez brasileiros dizem acreditar em Deus. O índice de 89% de crença em um poder superior coloca o Brasil em primeiro lugar no ranking de 26 países, empatado com a África do Sul. A média global de crença em uma divindade ou poder superior atinge 61%.

O estudo contou com a participação de 19.731 pessoas, cerca de 1.000 entrevistados no Brasil. Os países com menor crença são Japão (19%), Coréia do Sul (33%) e Holanda (40%).

A maioria dos brasileiros (76%) segue alguma religião. Entre eles, 70% são cristãos, incluindo católicos, protestantes e evangélicos. Mas apenas 49% afirmam frequentar igrejas, templos ou outros locais de culto pelo menos uma vez ao mês.

Ainda segundo o estudo, 90% dos brasileiros acreditam que a crença em Deus ou força superior pode ajudar no enfrentamento de crises, incluindo doenças, conflitos armados e desastres.

Fórum Interreligioso de Curitiba existe por respeito às crenças. FOTO: Prefeitura de Curitiba

Religião ajuda a reconstruir vidas em desespero

Quando Alice Bento Silva, 47 anos, moradora da Ocupação 29 de Março, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), acorda para levar seus dois filhos, de nove e seis anos para escola e, depois, ir trabalhar, eles se dão as mãos e fazem uma prece na porta de casa, em frente à imagem de Jesus.

A vendedora ambulante diz para si mesma, e os filhos repetem: “Todo lugar que estou é um lugar abençoado, porque Deus está comigo”, conta Alice, que é evangélica e frequentadora do Centro Espírita Bezera de Menezes.

Alice é paraense, saiu de Belém do Pará com a promessa de um emprego em Curitiba e vagas de ensino integral em uma escola particular para seus filhos. Ao chegar na capital do Paraná, percebeu que havia caído em um golpe e estava sozinha com suas crianças do outro lado do país.

“Na hora eu entrei em desespero, só chorava e pensava: como eu, mãe, sozinha, ia me virar numa cidade em que não conheço nada, nem ninguém, sem dinheiro e sem ter para onde ir? Chorei muito no primeiro dia, pensei que Deus tinha me abandonado com meus filhos. Fiquei horas em frente ao endereço que tinham me passado, comecei a rezar e recuperar a sanidade”.

Alice voltou à rodoviária e começou a pedir ajuda para ter um lugar para dormir em troca de serviços domésticos ou por caridade. Foi quando um guarda municipal a proibiu de abordar as pessoas e orientou para procurar a Fundação de Ação Social (FAS), no mesmo bairro.

Fé como alternativa à falta de políticas públicas

“A assistente social me encaminhou para a Casa da Mulher Brasileira. Lá conheci uma amiga espírita que me apresentou o Evangelho de Jesus segundo o Espiritismo e foi o que me deu forças para seguir, perdoar quem me enganou e perdoar a mim mesma por todo o meu passado”, explica Alice.

Mesmo conhecendo uma nova religião, Alice nunca deixou de frequentar a igreja pentecostal e ensina seus filhos as duas doutrinas de fé. “Eles conhecem a realidade dura do bairro, da escola. É preciso ter fé, não importa muito qual, porque só ter a realidade é muito difícil para quem é pobre”, afirma Alice.

De acordo com a vendedora, a fé é o principal alicerce para quem não tem acesso às políticas públicas e precisa acreditar que o futuro será melhor. “Meu filho Guilherme tem problemas respiratórios. Conhecendo o postinho do bairro e a falta de médicos, se eu for acreditar só na saúde, eu caio em desespero em cada crise de asma que ele tiver. Se não fosse Deus cuidando da gente, eu não sei o que seria”, conta Alice.

Ajuda divina da escola

Agradecimentos e pedidos de ajuda a um ser superior são constantes nos discursos de formatura na Escola Estadual Beatriz Faria Ansay, na periferia no Campo de Santana, onde há o maior índice de evasão escolar no ensino médio de Curitiba.

A professora Larissa Viana leciona para oitavo, nono ano, ensino médio e Educação para Jovens e Adultos (EJA). Ela conta que é muito comum ver os alunos com diferentes tipos de adereços religiosos, falando sobre eventos e práticas de fé.

Professora Larissa lê agradecimentos divinos em trabalhos escolares. FOTO: Sec. Mun. Educação

“O Tatuquara é um bairro de muita pobreza e violência e isso se expressa na rotina de nossos alunos. Independente do turno, todos estão imersos nesse território que soma vulnerabilidades estruturais aos problemas pessoais. Adolescentes que estudam de manhã e de tarde costumam professar a fé das famílias ou procurar sentido a essa fase da vida em outra crença, às vezes para afrontar a mesma família, às vezes por curiosidade”, conta a professora.

A professora relata que nas cerimônias de formatura e na correção de trabalhos de conclusão de disciplinas, os agradecimentos a Deus, orixás, anjo da guarda, espíritos daqueles que se foram ou, até mesmo, deuses da mitologia grega, são comuns. Ainda segundo a professora, os seminários, debates e apresentações sobre temas religiosos são muito bem aceitos por estudantes, além de despertar o interesse de funcionários.

Educação pode ampliar curiosidade religiosa

“Possuindo ou não uma crença, todos temos alguma experiência com religiões. Normalmente são histórias de superação, amor, acalento e pertencimento, pois independente da religião, o credo é vivido em comunidade, o que traz vivências a serem partilhadas na escola”, diz a professora.

Ela conta que a partir de leituras e discussões em sala, muitos alunos foram conhecer outras religiões e levaram o assunto para as famílias. “Já ouvi alunos evangélicos marcando de ir conhecer casas de candomblé depois de seminários, conversando com funcionários sobre as guias usadas no pescoço. Acaba se tornando um espaço de tolerância, aprendizado e multiculturalidade”.

Nos 12 anos de magistério na Escola Estadual Beatriz Faria Ansay, ela ouviu muitas conversas terminadas com frases como Deus vai me ajudar a passar por isso. Ela cita com emoção os vários discursos que ouviu de estudantes que foram os primeiros em suas famílias a terminarem o ensino médio, ou terem voltado a estudar depois de anos longe da escola e, principalmente, sobre a superação de vícios.

“São depoimentos de muita força, perseverança, superação do medo e crença que a vida pode ser melhor. Mesmo em situação de extrema dificuldade, violência e falta de perspectivas, a fé no amor e em um ser superior faz com que acreditem em algo melhor do que a realidade que encaram. É essa fé, essa certeza de que Deus vai ajudá-los, que ajuda a mover estruturas”, afirma a professora.

Fé e razão podem dialogar

Quem não tem uma tia, um primo, um vizinho ou até mesmo um seguidor de redes sociais que, em nome da fé, propaga ódio e fake news? Para tentar ajudar a disseminar a ciência sem perder a fé, a professora coordenadora do curso de Teologia na Faculdade Batista do Paraná, Janete Grivol Santos, criou o projeto Pesquisar com fé eu vou, um espaço para publicações acadêmicas e discussões sobre o diálogo entre ciência e fé. O grupo de estudos pretende que os futuros teólogos consigam levar o tema para suas comunidades.

“O extremismo da política chegou nas comunidades religiosas. Escuto sacerdotes evangélicos e de religiões de matriz africana comentarem sobre a divisão entre os fiéis e como os próprios fiéis usam de elementos e virtudes trabalhados nos cultos para fundamentar suas opiniões políticas. Na maioria das vezes, de maneira equivocada ou até mesmo de má fé”, explica a professora.

Professora Janete criou grupo de pesquisa científica sobre religião. FOTO: Arquivo pessoal

Janete se surpreendeu com a pluralidade de fiéis que o grupo reuniu. De acordo com a professora, a divulgação em redes sociais e o momento eleitoral em que o grupo surgiu atraíram o interesse de diversos líderes religiosos, professores de religião, estudiosos de filosofia e teologia.

“Eu acho que o sucesso do grupo está na ligação histórica entre desespero e fé. As pessoas estão desesperadas com cenário político de apocalipse e buscam elementos de segurança em virtudes e ações justificadas pela sua escolha religiosa. Esse cenário de fé como antagonista da ciência havia sido amenizado, mas, infelizmente, esse acirramento na democracia trouxe à tona de novo”, acredita a professora e pesquisadora.

Ela lembra, porém, que em um país de grande maioria religiosa, não podemos associar todas e todos que creem como contrários à ciência, antidemocráticos ou como um risco à população. “E é preciso ter fé para mudar esse cenário, sem prejuízo para a ciência ou para a crença em Deus”, diz Janete.

Fé e política também podem dialogar

Renato Moreira Filho é servidor público, militante sindical, comunista e cristão. Para ele, não há contradição na crença em Deus, na defesa da ciência e de posições políticas.

“A ciência só é válida se ela for provada e comprovada, e ela pode ser alterada conforme o nosso conhecimento evolui. A verdade é histórica porque o momento histórico nos permite ter aquele conhecimento. Conforme nós vamos aprendendo mais, a ciência vai evoluindo. Não podemos cometer o erro de ter fé na ciência”, analisa Renato.

Para ele, novas pesquisas vão reconstruindo e até negando descobertas anteriores, mas “na fé isso é completamente diferente. A fé é constante, não existe prova para fé, quando você tem fé. Você não precisa ter provas mesmo que as provas indiquem algo contrário. As coisas começam a se perder quando queremos ter fé na ciência e provar Deus”, afirma o servidor público.

Ciência e razão não são incompatíveis

Paulo Eduardo Sobreira Moraes é cristão e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele explica que a busca por respostas a perguntas existenciais pode ser respondida com ciência e fé.

Para professor Paulo, fé é refúgio para quando a lógica não é suficiente. FOTO: Arquivo próprio

“A ciência e a filosofia apresentam respostas bem elaboradas, que dão sentido ao existir. Mas, o sentido de transcendência é dado pela fé. É a fé, que se expressa de vários modos e por meio de vários sistemas culturais, que dá suporte existencial aos anseios de muitas pessoas. É na fé, em última instância, que as pessoa se refugiam quando não têm uma explicação lógica, filosófica ou científica que justifique as vicissitudes do existir”, analisa o professor.

Ele ainda destaca que a religiosidade oferece respostas simples e aparentemente seguras em meio às experiências que vivemos. Por outro lado, quanto maior o repertório lógico e científico, maior é a necessidade de fé para o engajamento em uma religião.

Preconceito e perseguição religiosa em Curitiba

A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) registrou, em 2021, 829 denúncias de intolerância religiosa e 962 violações relacionadas a crenças e cultos. Mais de 300 dessas denúncias vieram do estado no Paraná, metade das agressores foram contra religiões de matriz africana.

Um ano antes, todas as denúncias foram contra seguidores do candomblé ou da umbanda. A taxa está acima da média brasileira, em que a violência contra cultos e crenças de matriz africana representam 30% das denúncias.

Somente no mês de maio de 2023, três casas de cultos de religiões de matriz africana foram alvo de atentados em Curitiba e na Região Metropolitana. Um dos ataques foi contra a Casa Espiritual Sete Caminhos de Luz, na Cidade Industrial (CIC).

Além dela, sofreram ataques o terreiro Pai Oxóssi e a Casa Terreiro de Umbanda Tia Maria, em Piraquara. Os líderes espirituais de cada uma das casas afirmam que ocorreram crimes racismo religioso. No entanto, as polícias Civil e Militar registraram os ataques como dano ao patrimônio.

A reportagem pediu informações à Polícia Civil sobre as investigações, mas a assessoria não retornou até o fechamento da matéria. O Fórum Paranaense das Religiões de Matriz Africana (FPRMA) acompanha as denúncias e emitiu nota de repúdio. “Nossos atabaques não podem ser silenciados! É preciso um basta a todas estas formas de agressão, de intolerância, de racismo e de preconceito!”.

Mãe Tati exige respeito aos atabaques em Curitiba. FOTO: Arquivo pessoal

A mãe de Santo Tatiana Diniz, do Candomblé Ilê Axé Yá Ogunté, diz que ainda existe muito medo e preconceito em relação às religiões de matriz africana. “Ainda temos muito receio de sair com nossas vestimentas, com medo de sermos agredidos. Antigamente nós escondíamos, hoje pedimos respeito”, finaliza a sacerdote.

Raíssa Melo

@rsm_raissa

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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