Vera Malaguti Batista
O barulho dos tiros é
logo ali. Os mortos são recontados entre os mais bravos resistentes
e também por todos os lados: velhos, crianças, mulheres grávidas,
hospitais, creches, escolas. Não importa: a demarcação do
território criminalizado (aquele que vai “abrigar” membros de
organizações terroristas ou traficantes ou
narcoterroristas) vai exigir uma terapêutica salvacional
contra o mal e transformá-lo em alvo do dispositivo bélico,
high-tech, vídeo-game. Mas a constituição do território do mal
(aquele que uma certa sociologia e geografia insistem em mapear para
o refinamento dos controles) é um conceito de maior duração do que
o vocabulário do senso comum criminológico. Erigir uma mentalidade
obsidional é tarefa para muito tempo e configuração de muitos
poderes. Quando uma sociedade entricheira-se sobre si mesma,
concentrando suas riquezas num limite rígido, de fortaleza, contra
tudo e contra todos, ela vai precisar de um discurso que lhe assegure
a legitimidade da força que exercerá contra os que batem à sua
porta. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, ainda ontem, no
século XIX, mantinha-se armada contra os africanos escravizados.
Teciam-se fantasias com seu medo, que mantinha intactas todas as
razões da brutalização e desumanização “dos outros”. Nos
dias de hoje, como ontem, quanto mais se mata no morro, mais seguros
se sentem todos no balneário global.
Sobre as semelhanças
entre o massacre de Gaza e o nosso daqui (cerca de 600 mortos/mês,
essencialmente jovens, negros, pobres1),
fragmentos de dois artigos de O Globo do dia 15 de janeiro de 2009,
em plena ofensiva israelense, chamaram minha atenção. No Segundo
Caderno, p. 10, chocou-me o artigo de Cora Rónai, A guerra
perdida. Chocante, porém fundamental para interpretarmos na
nossa formação discursiva os argumentos racionalizadores e
legitimadores da matança em curso, ao arrepio de todas as leis
nacionais e internacionais.
“(…) Por ser um
país desenvolvido cercado de vizinhos em diferentes estágios de
‘civilização’, Israel paga, guardadas as devidas proporções,
o preço que a classe média paga no Brasil, em relação à
criminalidade nas comunidades carentes: para uma certa visão míope,
é sempre a culpada, porque, em tese, nessa forma enviesada de
análise, os bandidos são sempre inocentes – são apenas pobres
reagindo à desigualdade social (o que, claro está, é uma baita
ofensa à imensa maioria dos pobres, que sofrem na miséria sem nunca
pensar em delinquir) (…).”
O artigo de Robert
Fisk, A geografia da propaganda (15 de janeiro de 2009, na
seção Mundo, p. 26) ataca o mesmo ponto, criticamente:
“Eu estava em Toronto
quando abri o ‘National Post’ e vi Lorne Gunter tentando explicar
como é se sentir sob o ataque de foguetes palestinos: ‘Suponha que
você vive no subúrbio de Don Mills, em Toronto’, escreve Gunter,
‘e moradores de Scarborough disparem cem foguetes por dia contra
seu quintal, a escola do seu filho’. Entendeu a mensagem? As
pessoas de Scarborough são menos privilegiadas, geralmente
imigrantes – muitos do Afeganistão – enquanto os moradores de
Don Mills são de classe média. Nada como enfiar a faca na sociedade
multicultural do Canadá para mostrar como Israel está sendo justo
ao revidar’”.
Os dois discursos,
antagônicos, atestam o que viemos denunciando ao longo desses anos
sangrentos e tenebrosos, nos quais o discurso da guerra e do crime se
fundiram para um exercício brutal de controle social dos pobres e
dos resistentes no mundo. A Palestina sempre foi aqui. As fotos de
uma guerra e de outra são sempre as mesmas: bairros destruídos
pelas armas e pela miséria, meninos em holocausto e, do outro lado,
técnicas, racionalidades, tecnologias a serviço da segurança.
Aquele paradoxo que
Freud enuncia no entreguerras do Ocidente, entre a liberdade e a
segurança, engole todas as normatizações democráticas,
causando um colossal mal estar na civilização. Na Colômbia, em 5
de novembro de 2008, o Ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, disse
sobre o escândalo das execuções extrajudiciais em depoimento no
Senado: “Não se deve colocar em questão de juízo política de
segurança”. Em se tratando do inimigo da ordem, não há limite,
nem garantia. Este foi o âmago da política externa dos Estados
Unidos após a derrota do socialismo europeu. George W. Bush foi a
versão mais simplória e sincera desse espírito, e da ampliação
da colonização norte-americana do mundo. Deu no que deu. Nossas
políticas de segurança se ancoram nessa mesma licença para matar.
O jornalista israelense
Yonatan Mendel denuncia a esquizofrenia da mídia em seu país, onde
tudo é discutido livremente a não ser quando o assunto é
segurança:
“Quando
se trata de segurança não há liberdade. Só há nós
e eles, as Forças de
Defesa de Israel, FDI, e o inimigo.
O discurso militar, o único discurso permitido, triunfa sobre
qualquer outra narrativa. Não que os jornalistas israelenses cumpram
ordens ou um código escrito: apenas preferem pensar coisas boas das
forças de segurança”.2
Ele cita outro
jornalista, David Grossman, que critica as sociedades em crise que
forjam um novo vocabulário, fazendo com que apareça uma nova
linguagem em que as palavras “não mais descrevem a realidade, mas
tentam, em vez disso escondê-la”.
Se lá o Hamas ou
Hezbollah aparecem como “organizações” e não como partidos ou
movimentos políticos, aqui, todas as manifestações populares
contra a violência policial são “atos do crime organizado”,
cuja repressão brutal é naturalmente legitimada. Ninguém se
interessa pelos motivos da manifestação: mortos nos “territórios”
são dano colateral no Oriente Médio e “stress” no Rio de
Janeiro.
É hora de desmontar os
dispositivos bélicos, principalmente a palavra da vitimização e da
vítima. Antes de qualquer chacina, antecipa-se uma divisão
instituída por sentimentos: de um lado o cidadão de bem, o estágio
civilizatório avançado, e de outro as vidas baratas,
localizadas nos territórios do perigo. As disputas em questão
(domínio do varejo das substâncias demonizadas pelo proibicionismo,
ou o direito à vida do povo palestino) serão sempre despolitizadas
pelo combate entre o bem e o mal, e pelos choramingos dos que mais
têm e mais matam. É aí que reside o ovo da serpente, o
argumento nazista aqui e em Gaza. Afinal, como disse o sociólogo
Zygmunt Bauman, o nazismo é um projeto da modernidade ocidental e
não uma característica do folclore alemão. O historiador francês
Jean-Pierre Baud diz que para que ocorra o genocídio (como na
inquisição e no nazismo) cria-se um mecanismo institucional para
esta “amputação terapêutica do ser coletivo”: um sistema de
legalidade científica dominado por uma teologia e que essa política
do mundo seja apresentada para defender o “ser coletivo”.
Noam Chomsky observa
como a mídia transforma-se em exército, esperando instruções de
como apoiar agendas. Robert Fisk já havia denunciado a cobertura da
Guerra do Iraque, feita em conjunto com as forças de ocupação. As
cenas eram quase de jogos: soldados super-equipados invadindo casas
de suspeitos. Chomsky demonstra que esse modelo não é
democrático, mas uma “ditadura por escolha”, uma construção
política na qual público – “observadores intrusos e ignorantes
– são “espectadores de ação, não participantes…”.3
Nesta pauta perversa,
uma outra realidade salta aos olhos: a desproporcionalidade, a
desigualdade e a seletividade dos alvos. As imagens e os números não
podem esconder o massacre aqui e lá. Ancelmo Góes denunciou que os
policiais que mataram Jean Charles tiveram formação em Israel.
Talvez sua própria coluna já tenha anunciado visitas, intercâmbios,
tecnologias de nossa Secretaria de Segurança, e de outras, com
Israel. Somos todos experts militarizados do combate e
aniquilação dos inimigos. A obsessão pela segurança, aqui e lá,
é a do espaço vital. É natural que, nesse paradigma,
surgisse o monstro do antisemitismo: ele é nosso velho conhecido,
faz parte do arsenal de dispositivos do extermínio.
Negar o nazismo, aqui e
ali, não nos levará a lugar nenhum. Nessa guerra, posicionemo-nos
claramente: com o povo do Alemão e o povo de Gaza. A condição de
campo está dada, já que o território do mal tem que ser
contido especialmente (muros lá e cá), constituir-se em território
sem direitos (os Estados-terroristas vão dizer que é território
sem lei, mas é sem direitos), e seus habitantes terão sido
anteriormente, desclassificados, colocados como obstáculos da
barbárie à civilização, sujeira a ser removida, lembranças da
desordem. Como diria Eduardo Galeano, aqui como lá, não “se
mata por error, se mata por horror”.
1
O “Balanço das incidências criminais e administrativas no Estado
do Rio de Janeiro – 1º Semestre de 2008”, do Instituto de
Segurança Pública da Secretaria de Segurança Pública do Estado
do Rio de Janeiro (Disponível em:
<http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/BalancoSemestral2008.pdf>.
Acesso em: 27.jan.2009), decompõe as mortes, mas aqui vão os
números no 1º semestre de 2008: 2869 homicídios dolosos, 22
lesões corporais seguidas de morte, 107 latrocínios, 351 encontros
de cadáveres, 13 encontros de ossadas, 757 autos de resistência
(classificados como “outros registros”) e 10 policiais mortos em
serviço, num total de 4.129 mortos no semestre; ou seja, 688,16
mortos/mês.
2
MENDEL, Yonatan. Vocabulário
do Jornalismo Israelense.
In: Revista
PIAUÍ,
maio de 2007. Disponível em:
<http://www.revistapiaui.com.br/edicao_20/artigo_600/Vocabulario_do_jornalismo_israelense.aspx>.
Acesso em: 21.jan.2009.
3
In: Folha de São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 2008.