No dia 2 de junho uma triste e terrível notícia abalou todo Brasil. Um menino de 5 anos havia caído do 9º andar da sacada de um prédio, na região central do Recife. A criança veio a óbito logo após dar entrada na emergência do hospital. Sua mãe, uma empregada doméstica, que havia deixado o filho com sua patroa por alguns instantes, enquanto ela descia para levar o cachorro da mesma para passear.
O caso causou indignação e revolta nas redes sociais. Por estarmos vivendo o período de uma pandemia, muitos internautas faziam a seguinte pergunta: Por que aquela mulher estava trabalhando com seu filho, e não cumprindo a quarentena, conforme a maioria dos trabalhadores que não são de serviços essenciais? E a resposta todos nós já sabemos bem, que ela não foi afastada do trabalho pela patroa, por causa do racismo estrutural que ainda há neste país, por patrões não verem empregadas domésticas como pessoas pertencentes a uma família e por acharem que elas fazem parte dos seus utilitários, que podem ser usadas a hora que bem entenderem. O outro motivo, é que, muitas pessoas da elite branca brasileira ainda não aceitam o fim da escravidão, então, elas ainda mantém a profissão de doméstica bem viva dentro da nossa sociedade.
Em entrevista dada a imprensa, a mãe de Miguel Otávio Santana da Silva, disse que levou o menino para o trabalho por não ter com quem deixá-lo para ir trabalhar. Mirtes Renata da Silva, também relata que deixou a criança com a patroa por alguns instantes, enquanto descia com o cão da patroa para passear um pouco e ao retornar para o prédio, o zelador havia lhe dito que alguém tinha caído do 9º andar, mas, não imaginava que teria sido seu filho. Em um das imagens, é possível ver quando Sari Côrte Real, aperta o botão do último andar do elevador deixando Miguel subir sozinho, demonstrando ter nenhuma empatia pelo filho de sua empregada doméstica.
É revoltante, não é mesmo? Mas, existem milhares de Miguéis por esse Brasil afora, que estão sozinhos correndo perigo para que os filhos e os pets das madames e de seus maridos possam estar em segurança. Como é enorme a quantidade de Mirtes que deixam seus filhos sozinhos em casa e saem para trabalhar cuidando das casas de famílias e dos filhos das patroas, pois, precisam sustentar suas famílias. Eu mesma já fui uma delas, e numa época que a internet ainda engatinhava no Brasil e não tinha essa potência toda que é hoje. Então, não podia relatar como é o trabalho escravo moderno e mal remunerado nas casas de famílias.
Infelizmente, por falta de amor, de consciência, empatia e, principalmente, por falta de respeito de seus patrões, as domésticas perdem bens que lhe são caros e preciosíssimos, como a saúde de um(a) filho(a) ou, até mesmo, suas próprias vidas, para garantirem o conforto das famílias abastadas. A profissão de empregada doméstica é um resquício da escravidão. É a prova de como essa ferida não cicatrizou e ainda está bem aberta e inflamada, causando dores insuportáveis na população negra, que é a que mais presta este tipo de serviço.
Havia uma época em que as patroas e os patrões, quando perdiam a paciência com os filhos de suas empregadas, mandavam eles irem para cozinha ajudarem suas mães. Ou nem os deixavam circularem pelas casas, entravam também pela porta de serviço e lá ficavam o dia inteiro, até a hora de irem embora, não importava que horas fosse. Quando estavam empuleirados nas pias lavando louças, estavam varrendo chão, ajudando nos afazeres.
Quando tinham a sorte de suas mães trabalharem em casas de patrões “legais”, ficavam sentados na mesa da cozinha ou da área de serviço, desenhando com lápis e canetinhas velhas que os mesmos os davam, para tentar disfarçar a insatisfação que estavam sentindo com suas presenças ali. Ou então, iam distrair a(s) criança(s), que na maioria das vezes, só sabiam brincar de algo em que eles ou elas fossem superiores, como seus pais, tios e avós, só para mandarem e desmandarem, naquele(s) menino(s) ou naquela(s) menina(s), que se encantava e se deslumbravam com os brinquedos caros e com a enorme quantidade deles, e acabavam aceitando certas brincadeiras humilhantes, só para tocarem naquelas relíquias infantis, que só viam pela TV. E eram brinquedos, que muitas das vezes, custavam os salários inteiros de suas mães, que jamais elas poderiam comprá-los.
Infelizmente, me lembro bem dessa época, e quanto era tão comum estas atitudes, e como ficavam bem escondidas dentro das casas e apartamentos, não causavam incômodo em ninguém, às vezes, nem mesmo nas próprias empregadas domésticas, que por precisarem muito daquele mísero salário, suportavam tudo com resignação, acreditando que foi “Deus” quem designou aquele destino para elas e os filhos ou para as filhas. Trabalhavam o dia inteiro constrangidas por terem sido obrigadas a levar suas crias para o trabalho por não terem com deixar. E era o tempo chamando a atenção deles, pedindo-lhes que não incomodassem os patrões, que não fizessem barulho para não acordarem os bebês ou os idosos e tinham que ficar quietos, sem se quer, pensarem em abrir a boca. A não ser na hora do almoço, que quase sempre era lá pelas 14h, depois que donos das casas já tivessem almoçado, e toda cozinha já arrumada. Era uma época bem complicada, mas, se é que serve de consolo, os filhos das empregadas domésticas saíam das casas das madames inteiros e vivos e felizes por terem passado o dia com suas mães no trabalho.
O desrespeito e a desumanidade de empregadores com trabalhadores domésticos não surgiu com o caso Miguel, mas sim, sua mãe Mirtes, experimentou da forma mais cruel do que eles são capazes, por terem total certeza da impunidade. E no seu caso, a impunidade foi tamanha, pois a vida do seu filho custou 20 mil reais pagos por sua patroa Sari como fiança, para sair da delegacia tranquila, e voltar para o conforto de seu luxuoso apartamento.
Por já ter sido empregada doméstica, quase sempre que estou na rua ou no supermercado, procuro observar o comportamento das patroas e dos patrões com suas empregadas. Faço isso, pois ouvia quando atuava na profissão, e ainda ouço algumas me dizerem que nem todas e todos são ruins, e as tratam como se “fossem da família”. Então, fico observando para ver se é mesmo desta forma, ou se eu e muitas outras não demos sorte.
Certa vez, a cerca de mais ou menos 3 ou 4 anos, enquanto aguardava no ponto de parada das kombis que sobem o Morro, vi uma adolescente negra, em pé na porta do hortifruti que fica em frente, segurando uma criança branca no colo. Nada demais, se não fosse a quantidade de coisas que ela segurava junto com a criança. Ela aguardava a mãe do menino que estava na loja. Aquela menina estava com a nítida aparência de sono e cansaço, e àquilo também me chamou muita atenção. Não resisti em ver aquela cena, me aproximei, puxei assunto com ela, perguntando logo de cara por sua idade, e me respondeu com um sorriso cansado: “faço 17 anos amanhã”. Dei-lhe os parabéns e a desejei o melhor, mas sabendo que só as felicitações já seria uma grande coisa.
Perguntei a quanto tempo ela trabalhava na casa daquela mulher, e me disse que a quase dois anos, e que foi indicada por sua mãe, que trabalhava na casa da mãe da patroa. Não consegui perguntar mais nada depois de ouvir parte da minha história e de muitas empregadas domésticas sendo contada por alguém que eu acabara de conhecer. Ajudei-a segurando algumas coisas do menino, enquanto aguardava na fila. Assim que a mãe dele saiu, as devolvi, me despedi, a parabenizando mais uma vez.
E lá ia aquela menina adolescente, empregada doméstica, andando bem devagar, carregando no colo o filho da patroa, seus brinquedos e sua mochila, enquanto a mulher levava duas modestas sacolas, quase vazias, mas que, para ela, eram pesos enormes. Com certeza, quando chegaram em casa, a adolescente foi guardar as poucas compras, depois, dar banho na criança, preparar sua papinha, o almoço da família, enquanto a madame descansava da sua longa dupla e dura jornada, nitidamente exaustiva, até chegar a hora da refeição e tornar a descansar novamente.
Quantas meninas estão agora na mesma situação, trabalhando em casas de famílias por todo o país? Quantas delas estão perdendo parte da sua juventude e adolescência, para garantir o conforto e o bem estar das classes médias, ricas e milionárias? E a grande maioria, levadas por suas mães, que inocentemente, acreditam que suas filhas estão garantindo um futuro, chegando algumas, a se orgulhar delas seguirem seus passos como boas ou excelentes domésticas, ótimas cozinheiras de forno e fogão.
Como o caso do menino Miguel tocou fundo na ferida aberta e inflamada do racismo estrutural que há no Brasil. Se as investigações forem bem profundas, irão descobrir, que além de Sari Côrte Real, há muitas outras patroas que desprezam as vidas de suas empregadas e de seus filhos e filhas. Que há muitas Mirtes chorando pela dor da perda de suas crianças e lutando por justiça. Se investigarem minuciosamente, irão verificar a enorme quantidade de empregadas domésticas, de maioria negras, que perderam a sua saúde nas cozinhas das casas grandes e depois foram dispensadas por seus patrões sem direito a nada, nenhum centavo se quer para custearem seus tratamentos hospitalares.
A elite branca brasileira, faz muita questão de preservar qualquer resquício de escravidão. Se orgulham de terem em suas luxuosas mansões, coberturas e apartamentos, a sua empregada doméstica, e de se manterem verdadeiros patrões indomesticáveis, não sendo capazes de se comover com a dor de um ser humano, por ter a cor da pele diferente da sua. Não são capazes de sentir culpa por seus crimes, pois tratam tudo como meros acidentes, assim como os patrões de Mirtes Renata da Silva, mãe do menino Miguel Otávio Santana da Silva, trataram a tragédia que se abateu sobre aquela humilde família. Isso já deveria ser o estopim para ser dado um fim nesta profissão que existe desde o início da escravidão no Brasil, mas, infelizmente, sabemos que é praticamente impossível que isso aconteça, pois, muitas mulheres, principalmente as negras, já nascem preparadas para trabalharem a vida inteira como empregadas domésticas nas casas de famílias brancas.