Vejo uma cortina densa que sobrevoa o céu, alcançando velocidades inimagináveis, como as aves em migração.
Inesperadamente, sem relâmpago algum, sem nenhum anúncio atmosférico mais consistente; constantemente revelados em aparelhos de alta tecnologia; que envolvem a todos; uma chuva ácida cai, pelas ruas amontoadas dos centros urbanos.
Há aqueles que se protegem em parapeitos: das lojas, dos cafés, dos ministérios. Apesar do azul ensolarado anterior, há os prevenidos, que sacam das bolsas guarda-chuvas, capas. Desfazendo-as como chumbo derretido, em vão, desesperados saem em disparada.
Vejo o choro ancestral em nuvens carregadas de cinzas, trazido das florestas violentamente desvirginadas, estupradas. Vejo a centelha produzida ao se deparar com o solo, ao se misturar com o chão, já ensanguentado, num encontro de lágrimas, num encontro de vítimas.
Vejo uma cortina negra cobrindo as carnes nossas, como se fosse um cobertor, sem o leve e pacífico respirar noturno.
Como um punhal sensivelmente nos atravessando dia após dias, carregam os membros nossos, até a alma, ao silêncio dos necrotérios.
Absurdamente, tão rápidas as correntes dos ventos da devastação – fenômeno só equiparado aos disparos de helicópteros, por forças militares à pobres, por exemplo, que ao se chocarem a resistência natural dos morros, das periferias, ceifam a inocência, ignoram cruelmente as ladeiras, os becos, as lajes, contaminando-as. Cabendo as famílias, encurralarem-se todas sobre o pavor, sobre o medo.
Vejo sangue tanto lá quanto cá.
Vejo sangue nos ventos vindo dos céus, de quem mata e desmata.
Vejo os mais de 6 mil focos de incêndios provocados pela ganância do vil metal, ardendo nas vistas dos deuses.
Vejo o fronte aéreo que carrega 881 mortes desde janeiro.
Como num ensaio das bestas, nos despindo e nos cobrindo das suas próprias chagas.