O sonho que nasceu dentro do trem
Jessé Andarilho, cria de Antares, Santa Cruz – RJ, autor dos livros Fiel e Efetivo Variável, responsável pelo Sarau Marginow, fala com exclusividade para a Agência de Notícias das Favelas, sobre seu processo de escrita dentro do trem; seus próximos livros; sua parceria com o empreendedor social, ativista e produtor Raull Santiago e em breve, o novo espaço em Antares, a Casa Marginow.
ANF: Como surgiu a vontade de escrever livros?
J.A: Eu repeti cinco vezes a sétima série e duas vezes o primeiro ano. Na verdade, eu não tinha gosto pela escrita. Eu só lia a Bíblia porque minha mãe me colocava para ler todas as vezes que eu aprontava. Se eu chegasse em casa de madrugada, ou fizesse alguma coisa que não agradasse a ela, eu tinha que ler a Bíblia.
Mas, antes de ter o gosto pela escrita, eu passei a ter primeiro o gosto pela leitura, uma amiga me pediu para ler um livro – Coração do comando, do Julio Ludemir –, eu li o livro de uma vez só. Ele tinha uma linguagem diferente e aquilo me prendeu, eu fiquei impressionado. Depois disso, eu comecei a comprar livros, principalmente aqueles que falavam de favela e, assim, quando eu li todos que tratavam desse assunto, eu passei a procurar outros temas. É como na vida: tem momentos que você não quer mais conversar com aquelas pessoas sobre as mesmas histórias, você cria a necessidade de conhecer novas pessoas e ouvir novas histórias. E, dessa forma, eu virei um leitor.
ANF: Seu primeiro livro foi escrito no trem. Como escrever um livro num vagão lotado, com tanto barulho?
J.A: Eu ficava muito tempo ocioso dentro do trem, já que é muito tempo de viagem da Central do Brasil até Santa Cruz. Eu pensava: se eu consigo contar uma história e mais de três pessoas me ouvem, escrever deve ser mais fácil e se eu conseguir escrever um livro no barulho, as pessoas conseguirão ler meu livro no silêncio. Meu foco sempre foi para que as pessoas não desperdiçassem tempo em redes sociais ou jogando. Eu já perdi muito a minha concentração lendo livros no trem, por isso pensei: os meus livros têm que ser diferentes.
Mas, então, por que não escrever em casa, relaxado, no silêncio? Porquê em casa eu ia ver televisão, jogar bola, brincar com meus filhos, curtir minha esposa. Com tempo em casa, iria fazer coisas que eu achava prazerosa, menos escrever, porque eu não tinha prazer em escrever, mas no trem eram quatro horas por dia de viagem e eu escrevia muito.
ANF: Você imaginou que o livro Fiel alcançaria esse sucesso todo?
J.A: Eu não queria fazer a diferença, eu queria fazer diferente. O Fiel é um tipo de livro que a pessoa que não gosta de ler, como eu não gostava no passado, lê e gosta. Era isso que eu queria: chegar nessas pessoas. Quanto mais eu vivia esse sonho, mais eu ia construindo minha história profissional e, assim, a escrita ia alcançando outros caminhos. Foi difícil, dizem que o caminho é melhor que a chegada; eu não sei, pois ainda estou caminhando, e está valendo a pena. Lembro da primeira vez que meu conto saiu no jornal A Voz da Favela, eu fiquei tão feliz que até hoje eu tenho o jornal guardado.
Se eu não esperasse isso, eu não teria jogado tudo para o alto: meu rolê nos finais de semana, meus bailes, tudo em busca desse sonho. Quando eu assinei o contrato para a publicação do livro, eu perdi 20 kilos, comecei a me preparar para o sucesso, pois eu sabia que eu ia percorrer muitos lugares e eu sei que ainda vou chegar a lugares que eu nem imagino. Eu não vou esperar o sonho se realizar, eu vou me preparar para quando acontecer, eu estar pronto.
ANF: Quando sairá o próximo livro?
J.A: Vai sair, sim, para 2020 mais dois livros: “O Esquema”, que fala sobre honestidade no dia a dia – do cara que passa o troco errado; da água mineral que é vendida na casa de show, que é adulterada (é água da bica). Tem um personagem que parece honesto e entra para política e a mídia vende a imagem dele como se ele fosse “certinho”-, esse está quase pronto; o outro é “A Batalha”, que fala sobre esse universo das batalhas de Rap, onde o personagem principal é muito “zoado” na escola, e com a ajuda da professora de português e com o Rap na vida dele, as coisas começam a acontecer. Depois, tem um com o Raull Santiago, que é meu grande amigo. Estamos numa parceria para escrevermos juntos um livro contando a história do Raull, e eu estou muito feliz em fazer parte desse trabalho.
ANF: Além dos livros, você tem o projeto Marginow como você consegue tempo para conciliar tantos trabalhos?
J.A: Ninguém faz nada sozinho, o sarau Marginow já tem cinco anos e tenho uma equipe que me ajuda. Posso chegar atrasado lá debaixo do Viaduto de Madureira e a galera já vai estar fazendo. Eu não quero ser o dono de tudo, quero ser apenas um incentivador e fico muito feliz vendo as coisas acontecendo e as pessoas se envolvendo. E agora, além de Madureira, estou batalhando para o sarau Marginow voltar para Antares. Vou contar em primeira mão: estou correndo atrás de um local em Antares para ser a Casa Marginow, e isso está próximo de acontecer. Um local de liberdade, uma mistura dessas artes: rap, cultura, literatura e cinema. Os moradores de Antares vão encontrar tudo isso nesse espaço
ANF: O que mais te marca no seu trabalho?
J.A: Quando eu faço palestra nos colégios, por exemplo, e vejo a molecada zoando, não me deixando falar no início e depois, quando termina, chega e diz que passou a prestar atenção e gostou da minha história. Isso me emociona muito mais do que conhecer alguém “importante”, estar em algum lugar, ou aparecendo na TV. Um dia eu estava com dois amigos na favela e vieram três meninas, pedi para tirar uma foto com meus amigos e elas me reconheceram na hora e disseram que leram meu livro e relataram que depois de uma palestra (na qual) eu disse que as pessoas deveriam acreditar nos seus sonhos, elas se matricularam no pré-vestibular social e ingressaram na PUC – Rio. Isso não tem preço, eu fico muito emocionado. Isso é o sucesso: saber o que você fez na vida das pessoas.
Entrevista feita para o jornal A Voz da Favela em Agosto de 2019.