Pastor Ariovaldo Ramos é escritor, articulista e conferencista com larga experiência na missão da igreja. Foi presidente da AEVB (Associação Evangélica Brasileira), Missionário da SEPAL, e presidente da Visão Mundial no Brasil. Atualmente ministra na Comunidade Cristã Reformada e lidera a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.
ANF: A que o senhor acredita que tenha se dado a vitória de Jair Bolsonaro?
Pr. AR – Se deve a uma conjugação de fatores: primeiro, o oportunismo de quem está por trás dessa candidatura, quando se deu conta que o candidato natural da direita, que seria o ex-governador de São Paulo, não conseguiria alçar voo e que, portanto, na direita havia um vazio que não estava preenchido. Gradativamente essa candidatura começou a ser montada, a partir de mentiras promovidas por meio das redes sociais, como ficou demonstrado mais tarde. Também começou a ganhar espaço entre os evangélicos, porque o candidato se deixou batizar, anunciando assim a adesão a sua fé evangélica, adesão essa que ele nunca assumiu de fato, mas sempre flertou com os evangélicos. Depois os evangélicos começaram a insistir na pauta moral, que sempre foi a marca da bancada evangélica, e a candidatura começou a ganhar a simpatia dos evangélicos, porque insistia nessa pauta moral como se fosse o grande problema da nação.
Segundo, uma série de desinformações sobre o candidato que deu a ele uma mística, porque de fato ninguém sabe muita coisa ou quase nada sobre ele. Então fabricado pela mídia e assumindo esse personagem, os pastores começaram a alçá-lo em uma conversa que começou tímida e depois se tornou ostensiva.
ANF: Por que, mesmo dizendo que é a favor da tortura e contra as minorias e movimentos sociais, os evangélicos apoiaram Jair Bolsonaro?
Pr. AR – Porque os evangélicos estão sobre a influência da teologia da prosperidade, desde a década de 90 e agora de modo quase universal. Essa é uma teologia racista, misógina, que juntou fundamentalismo com capitalismo e com toda sorte de segregação natural a essas duas correntes. Segregação contra negros, mulheres, homossexuais, enfim, todos os diferentes. Essa teologia da prosperidade é bastante punitiva. A teologia da prosperidade recuperou a tese que os negros são descendentes de Cain, é extremamente segregacionista, não bastasse isso a teologia da prosperidade que é subproduto do calvinismo, uma vez que acredita que os fies têm marcas exclusivas. O calvinismo herdou um certo determinismo sobre a lógica que só acontece se Deus quiser, e claro que isso é uma lógica de opressão e uma grande desculpa para qualquer tipo de enriquecimento, já que os fins passam a justificar os meios, por isso a tortura é um meio, se o fim for justo ela passa pelo menos a lógica dos demais meios. Isso, porém, não é uma coisa inusitada, por exemplo, os calvinistas fizeram o Apartheid, que foi um regime muito cruel, cheio de torturas, perseguições e segregações, lamentavelmente, voltou com o agravante da teologia da prosperidade que avaliza o poder dos conquistadores. Porque Deus é Deus dos vencedores.
ANF: Qual seu pensamento sobre a igreja evangélica no quadro atual?
Pr. AR – A igreja se afastou da reforma e da doutrina da graça. Ela agora é pós protestante e se tornou militocrática e moralista, não é que a fé cristã não tenha moral, ela tem moral, mas não é moralista, ou seja, a fé cristã é ética, porque trabalha com a reação, por exemplo: Jesus Cristo chama uma pessoa de assassino não por ela ter cometido um crime de homicídio, mas porque ela desejou isso na sua raiva, então a fé cristã trabalha com a ética da reação. Qual o caráter da pessoa? Como ela reage quando é provocada ou quando vê algo que poderia desejar naturalmente, embora não devesse? Como é controlado isso? Só é controlado pelo poder do Espirito Santo. A fé Cristã é uma fé dependente do Espirito Santo, ela não trabalha com a lógica da tarefa e sim do fruto, que é o resultado de uma vida de conexão com Deus. Na fé cristã você não vive para Deus, você vive de Deus, é Deus que santifica seu nome, é Deus que purifica. A Igreja Evangélica mudou e hoje vive de tarefas, procurando as razões das punições das perdas, das doenças e essas razões estão no pecado, nos comportamentos indevidos, no não cumprimento de tarefas, na pouca oração, na pouca leitura bíblica e no pouco trabalho evangelístico. É sempre uma relação de tarefas e recompensa, isso não é mais fé cristã, e nem fé protestante. A fé protestante é a fé que crê na graça do nosso salvador Senhor Jesus Cristo, que sua morte e ressurreição resolveu o problema com a trindade, que a trindade perdoou os seres humanos que agora todos estão sendo convidados a receber seu perdão e, consequentemente, a transformação numa pessoa a imagem e semelhança de Jesus cuja verdadeira identidade dessa pessoa será definitivamente conquistada porque ela foi perdida na queda onde a presença do Espírito Santo dará fruto.
A igreja evangélica hoje é uma igreja totalmente distante do evangelho, marcada por projetos pessoais dos ministros, migrando da estrutura centralizada, como é a estrutura romana para uma estrutura descentralizada em várias denominações e depois migrou das denominações para as organizações denominacionais, das denominacionais para as comunidades independentes, das comunidades independentes para os ministérios particulares, pessoais e egocentrados. Então hoje são ministérios, com ministros que dão o tom da Igreja evangélica mesmo que pertençam a uma denominação eles que são nominados, chamados, evocamos. A igreja personalista, individualista, ao extremo, com uma visão comunitária que praticamente desapareceu, suas ênfases são extremamente particulares e individualistas, as músicas são todas na primeira pessoa do singular, totalmente distante da fé do nosso Senhor e salvador Jesus Cristo, distante também da reforma protestante que, aliás, faz 501 anos esse ano e que no Brasil nem é mais comemorado.
ANF: O que devemos esperar nos próximos 4 anos?
Pr. AR – Um circo de horrores, tanto dentro da igreja evangélica quanto do Estado. A formação dos ministérios do candidato vitorioso já mostra isso. Nós temos essa ignomínia do Ministério da Justiça, assumido pelo juiz que inviabilizou a vitória do candidato do povo e também a vitória do Haddad, uma vez que insuflou todo o judiciário a ficar do lado dele contra tudo o que mencionasse o nome de Lula. Então, foi uma armadilha muito bem tecida, que agora culmina nesse circo de horrores, que já começa a se mostrar com a escolha de ministros corruptos ou acusados de corrupção, um que inclusive está condenado. Na igreja evangélica também, porque os vitoriosos usarão toda a sua fúria e sua ira, que já vinha sendo feito. A igreja evangélica já expulsou pessoas, porque não votavam com os pastores. Criaram um ambiente segregacionista, coisas que nem se esperavam de gente que se diz crente em Jesus Cristo. Esses vitoriosos estarão totalmente convencidos de que fizeram a vontade de Deus e vão tripudiar sobre os derrotados e isso é só o começo das dores. Agora, no meio disso tudo, está a reprovação absoluta da igreja evangélica. Essa igreja, com exceções, das quais fazemos parte, perdeu o direito de pregar o evangelho, perdeu a credibilidade, principalmente, depois que a bancada montada em Brasília tomar posse. Quando toda essa ignomínia vier à luz, os evangélicos perderão toda a autoridade para falar de Jesus Cristo, do amor de Deus, que Jesus ama, que é bom, que cura, salva e transforma. Não vai mais ter moral para falar isso, porque estará misturado com o que há de pior na história brasileira. A igreja evangélica se condenou ao que há de pior na história: a ser parte do que é irrisório, do que não pode ser levado a sério, do que é abominável. Se esse governo conseguir cumprir esse mandato, vai ser terrível, para a igreja evangélica por excelência. Ser evangélico vai ser um peso, um custo. A igreja está dividida, na minha perspectiva, irremediavelmente, por causa do teste no qual foi reprovada, ou seja, aceitou, concordou, estimulou e votou no discurso que a humanidade rejeitou. O discurso que está por trás de escravismo, de tráfico humano, do apartheid, do nazismo. Discursos que a humanidade havia rejeitado, produzidos atrás do genocídio, de guerras como a de Ruanda. Discursos que a igreja evangélica brasileira, com exceções nobres e não pequenas, porque nós formamos um movimento muito grande, que inclusive fez o candidato em questão recuar 12 pontos entre os evangélicos. A igreja, portanto, está irremediavelmente dividida. Vai ser um custo e serão 4 anos muito difíceis. Será ruim também para o Brasil, pois seremos cobaias de uma tese enlouquecida do Estado mínimo e minimalista que é pior ainda. Vamos nos tornar uma nação meramente extrativista, a serviço da grande potência do Norte. É o desmonte. O que começou com o golpe de Estado e foi efetivado pelo temeroso e temerário agora vai ter livres rédeas porque esse governo ainda vai poder dizer que é fruto de eleições, ainda que as eleições tenham sido totalmente contaminadas. Não é uma eleição republicana. Ela foi contaminada pelas notícias falsas, pela ausência do candidato nos debates, ou seja, todos os que votaram, votaram às cegas, a partir de um ímpeto emocional alimentado principalmente pelos moralistas, pelos pastores e pela extrema direita a partir de robôs, mentiras, calúnias, armadilhas e esse tipo de coisa. É uma eleição, porque segue o rito institucional, mas não é uma eleição entre ideias, programas, posturas e métodos. É uma coisa às cegas, movida pelo ímpeto emocional e irracional, insuflada por meios de manipulação da opinião pública.
ANF: Qual deve ser o papel da igreja nos próximos 4 anos?
Pr. AR – Bom, diante desse novo governo, que será comandado pelos interesses do agronegócio, pelos direitos dos bancos, financeiras, pelos interesses das indústrias e comércio. Estamos caminhando para perder tudo, porque eles não terão forças suficientes para enfrentar o capitalismo, eles não entenderam que o governo, trabalhista, liderado por Lula e Dilma era um governo de proteção do capital nacional, que exigia a contra partida da participação dos trabalhadores no lucro, no poder de compra com salários que desse ao trabalhador a capacidade de participar do mercado, isso era uma proteção do estado. O estado protegia o capital nacional da voracidade do capitalismo internacional e criava o meio de acesso aos pobres para que esses participassem do mercado por meio do crescimento do seu poder de compra, por acesso a escolaridade, à saúde, moradia, transporte, a melhora de qualidade de vida. A igreja, que apoiou esse governo, vai ser a mais prejudicada, porque a maioria dos membros são pobres, são mulheres, negros, e gente de renda inferior que agora vai ser massacrada economicamente, isso quer dizer que os gazofilácios irão gritar, ou seja, a renda da igreja irá cair drasticamente, não porque os irmãos irão ser infiéis, eles estão sendo manipulados e irão fazer das tripas coração para contribuir e eles não terão com que contribuir e com isso a igreja irá padecer economicamente. Temos que ir para uma formação de base que é principalmente a igreja da periferia, que não votou neste governo por convicção, mas por alienação. Essa igreja tem que ser ajudada, para que nas próximas eleições ela esteja politizada, consciente dos seus direitos, conscientes de como os seus direitos são sustentados pelas as escrituras sagradas e consciente do significado da fé cristã. A igreja de classe média você não vai conseguir isso, porque a classe média sonha com este mundo capitalista segregacionista, da acumulação, da concentração de renda, sonha com um mundo do 1%, sonha com a sua riqueza, com os seus carros e também com as suas aventuras. Essa igreja não tem saída e vai morrer aos poucos porque a classe média vai desaparecer. A defasagem entre ricos e pobres vai aumentar, consideravelmente, e a chamada classe média vai ser jogada na pobreza e a pobreza na miséria. A história da igreja está na mão da igreja militante, que resistiu ao neonazismo, essa sim tem uma tarefa educadora evangelizadora dentro e fora da comunidade, muito mais dentro da comunidade porque a comunidade precisa voltar a ser protestante. Isso não será fácil nem a curto e médio prazo.
*Entrevista publicada no Jornal A Voz da Favela edição novembro de 2018.