“A gente tem que ser mais estratégico com isso. Acho que a gente tem uma potencialidade que são as mídias comunitárias”
Nascido no morro Santa Marta, Itamar Silva cresceu em uma casa com muita conexão, de muitos movimentos culturais, afinal seu pai era uma figura popular ligado à Folia de Reis e ao samba.
Em 1976, ele entra na faculdade Hélio Alonso, onde cursa jornalismo. Um período muito importante, pois os movimentos sociais começam retomar as manifestações e a ocupar mais a cena pública, após um período da distensão. É nessa mesma época que ele se conscientiza da importância de estar no movimento de favela e se apresentar como alguém deste movimento.
Sua primeira tentativa foi se aliar ao movimento negro do Rio de Janeiro. Participou, sem ser um militante, do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), do Movimento Negro Unificado (MNU) até chegar à Pastoral de Favelas, onde o tema favelas “casava” com ele.
A partir daí, acompanha todo o debate em torno das favelas e o tema das remoções e leva toda essa discussão para a Associação de Moradores de Santa Marta. É lá que vai ser criado o histórico jornal ECO com o objetivo de ecoar as notícias do morro pra fora e de fora pra dentro. O jornal, também, foi motivo de muitas disputas, brigas e ameaças, uma vez que buscava levar esclarecimento aos moradores do Santa Marta sobre o papel das Associações de Moradores, contrariando interesses pessoais dos presidentes dessas associações na época.
O jornal ECO foi um porta-voz importante, cumprindo o papel de diálogo com os moradores e funcionou até 2006. Teve três etapas: “cachacinha” (feito a partir do mimeógrafo), mimeógrafo elétrico e tablóide. Essa última etapa dependia de recurso. Colocar na gráfica gastava-se muito dinheiro. Em 2004 a 2006, tiveram uma experiência online com o apoio do Comunicar da PUC. Só que a dinâmica do próprio jornal ECO e o desgaste de deslocamento até a PUC, fizeram com que terminassem em 2006.
Diretor da Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj), na década de 80, atualmente é coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e idealizador da Colônia de Férias ECO, no Santa Marta, Itamar Silva conta nesta entrevista sua luta política no movimento das favelas, o direito ao lazer para as crianças, além de comentar sobre a intervenção federal e a importância das mídias comunitárias no atual contexto das favelas.
A Voz da Favela: Como você começou a atuar na luta pelos direitos nas favelas?
Itamar Silva: Quando comecei a militar em defesa dos direitos das favelas, já foi uma opção por onde ela está. A luta contra a remoção de favelas já foi muito clara para mim desde o início. Com a Pastoral de Favelas, discutimos o termo “remoção branca”, que tinha em sua base o conteúdo de gentrificação.
A questão racial também. Mesmo não tendo seguido uma militância direta, nem no IPCN e nem no MNU, a questão racial para mim sempre foi muito forte. Eu sempre vivi em dois mundos. Sempre estudei em escola pública, onde tinha muito aluno de classe média e a maioria era branca. Então, eu já percebia essa diferença muito fortemente. Quando entrei no primário, até o terceiro ano eu tinha cinco vizinhos do Santa Marta. A partir da 4ª série eu tinha uma única companhia do Santa Marta. Na admissão, eu era o único da favela junto com um conjunto de crianças da classe média de Botafogo (filhos de dono de tinturaria, dono de um bar, de professores e tudo o mais). Quando chego à universidade, em 1976, acho que era o único do morro. Eu passei para a Hélio Alonso e para a Universidade Federal Fluminense (UFF). Mas a UFF era o dia inteiro e eu não podia, pois tinha que trabalhar. Então, optei pela Hélio Alonso. Eu já podia pagar, trabalhava, tinha o meu próprio dinheiro. Então juntava as duas coisas. Morar na favela, essa tensão entre favela e asfalto e a questão de ser negro da Zona Sul, circulando nesses espaços.
Minha militância era fora da universidade. Era no movimento de favelas. Era na Pastoral de Favelas. Fui diretor da Faferj entre 1980 e 1985. A Faferj tinha uma presença muito atuante no Rio de Janeiro. Tanto que em 1980, o congresso da Faferj já trazia o lema “Urbanização, já”, fazendo a disputa que era importante pra gente. Ir contra toda a política de remoção que aconteceu no período da ditadura. De 1967 a 1973, foi o período em que mais se removeu favelas no Rio, depois disso só o período de Eduardo Paes nos grandes eventos. A entrada da Faferj, nos anos 80, foi importante para fazer essa disputa de urbanização das favelas. Porque vai permitir que, a partir de 1982, quando Brizola assume [a prefeitura], comece a pensar a urbanização de favelas de outro patamar, respeitando a tipologia de onde ela está. Essa disputa grande e briga foram importantes nesse período.
AVF: O que te inspirou a trabalhar com crianças em um projeto no morro? Foi algum tipo de vivência na infância?
IS: No Santa Marta, nós temos a Colônia de Férias ECO, criada em 1980. Um trabalho com crianças de 6 a 12 anos que a gente trabalha até hoje. Eu e meus amigos estávamos reunidos no final de 1979 conversando e percebemos uma lacuna, ou uma marca, que estava em mim, estava em meu irmão, estava em outro amigo, no grupo que estava ali, no Santa Marta. A professora sempre mandava escrever uma redação. “Faça uma redação, contando como foram as suas férias?”. A gente contando isso, percebemos que tínhamos um probleminha. A gente não viajava. A gente não fazia nada diferente, a não ser continuar brincando no morro, soltando pipa, correndo, brincadeiras normais que para gente não tinham muita diferença. Férias ou não férias, a gente fazia isso da mesma forma. Então, cada um do seu jeito inventava coisas para poder colocar na redação. A gente começou a rir, claro. Era um momento que a gente estava discutindo uma alternativa de lazer para as crianças. A ideia da Colônia de Férias nasce dessa lacuna, dessa nossa marca. Em 1980, a gente faz a primeira Colônia no alto do morro com as crianças do morro. E aí começamos com cem crianças e depois chegamos a 320 com 15 dias de trabalho, que é o que marca a nossa Colônia de Férias.
AVF: Como você enxerga a questão da intervenção federal nas favelas?
IS: O Rio é uma cidade muito particular. As favelas ocupam e atravessam todos os espaços da cidade da Zona Sul a Zona Oeste. Ela explicita as desigualdades sociais, raciais, que a gente tem na cidade. Mas também, nesse sentido, ela aproxima, ela provoca a convivência.
Favela nunca foi incorporada no imaginário da cidade como parte dela. Achava-se que era o lugar do mal, da doença, da contaminação e houve várias tentativas de atacar as favelas pelo viés da doença, desse tipo de mal.
Principalmente, nos anos 90, ficou muito marcado pela imprensa que a favela é um lugar de guerra. O povo da guerra ao tráfico. Essa foi uma justificativa chave para seguir uma atuação violenta nas favelas. Isso muda substancialmente essa relação com a cidade e o quanto que se pode tolerar ambos os lados.
Algumas intervenções públicas e federais vão se mostrando como esse poder público não é monolítico. Ele tem algumas atuações pontuais e vai se conformando dessa forma.
AVF: Você acha que esse termo “guerra” usado pela grande imprensa estigmatiza ainda mais as favelas?
IS: Quando a gente for analisar os jornais, isso começa a ser trabalhado com ênfase em meados dos anos 80. Guerra é guerra. Isso vai criando uma justificativa geral de que se é guerra, tem que ter enfrentamento, tem que ter combate. E na guerra vale tudo. Na guerra quem tem mais força se impõe e justifica as mortes. Porque se é guerra, algum inocente vai morrer. O sacrifício é necessário e isso é uma coisa muito negativa para as favelas. Foi um desserviço para a cidadania do Rio essa construção de que estamos em guerra. É uma guerra contra o tráfico. E na verdade se dá lá na pontinha do varejo de tudo isso. Enquanto você tem toda uma estrutura anterior que vai se alimentando e ganhando dinheiro efetivamente com isso. Mas quem morre de fato é lá na ponta em um determinado território dessa cidade, que são as favelas. A mesma lógica que justifica a intervenção do Rio, porque é a lógica de uma guerra de um confronto incontrolável, de uma incapacidade do Estado de gerir as próprias forças policiais. É o que alimenta a justificativa do próprio governo federal fazer a intervenção militar sob o comando dos militares do Rio de Janeiro.
Apesar da intervenção ser no Rio, o efeito midiático, o efeito concreto é nas favelas. A primeira imagem que se produz é o exército ocupando a Vila Kennedy, por exemplo. O problema é esse. É uma guerra que tem como território as favelas e aí vai criminalizando mais uma vez esses espaços, esses moradores.
AVF: Essa intervenção assegura ou viola os direitos humanos?
IS: Até esse momento, a gente precisa tomar muito cuidado com isso, porque eu acho que a intervenção é uma violação de direitos. Essa exacerbação de armas, de tanques, mesmo que não acontecesse nada, acho que isso já é uma violência para esses territórios. Porque é você alimentar um imaginário de que ali moram os perigosos. Ah, “não são todos” ou “não são muitos”. Mas a ação está sendo feita sob aquilo ali. Eu acho isso muito ruim para as favelas, porque alimenta, historicamente, essa visão que se tem. Ela [a intervenção] acaba tendo o controle sobre esses territórios e moradores. A coisa mais clássica é aquele caso da “carteirinha” do menino do exército tirando retrato, o “fichamento”. Isso é uma invasão, um tipo de ação que intimida. O problema é que alguns moradores vão achar que isso resolve o problema. Aí está a grande ilusão. Porque como a situação está, realmente, em algumas favelas uma tensão e a violência muito grandes, balas perdidas ou achadas, o morador acaba aceitando uma violação de direitos básicos de ir e vir, uma violação do direito de não ter na sua visão tanque, armas e tudo o mais para poder se sentir seguro. O problema disso é que é temporário. Não é permanente, visto as experiências anteriores no Rio de Janeiro. A intervenção não é uma solução e em médio prazo ela vai mostrando as suas fragilidades. A favela mais uma vez se torna bode expiatório para responder a uma disputa política no Rio de Janeiro.
AVF: Qual seria a importância das mídias comunitárias nesse sentido?
IS: As mídias populares, comunitárias têm um papel muito importante na disputa dessas narrativas. A gente tem que ser mais estratégico com isso. Acho que a gente tem uma potencialidade que são as mídias comunitárias. Uma produção que tem a vivência de cada um que faz. Mesmo que a gente não tenha que concordar com tudo que sai dessas mídias, é uma realidade que é visceral. São moradores que conhecem A e B e sabem o que estão falando. As favelas são muito diferentes entre elas. As mídias precisam dialogar mais sobre isso para poder entender a diversidade de opiniões e de percepções de cada território. Como se aproximar daqueles que pensam diferente. Seria bacana, também, as mídias criarem um espaço de controvérsia a partir dos moradores, porque isso ajuda a criar um senso crítico sem ser a partir do meu ponto de vista. A gente que está dentro da favela, temos mais possibilidades de oferecer elementos para uma reflexão interna. As mídias comunitárias não conseguem reforçar a mídia do outro. É um caminho que a gente tem que buscar. Qual o caminho a gente pode trilhar para poder reforçar essa mídia que está circulando, que está com potencial? Não são vozes isoladas. Elas têm rebatimento.