Uma menina de 13 anos ouviu de sua mãe que já tinha idade suficiente para fazer algo por seu país. Ela, sem hesitar, foi lá e fez. Lia para cegos, cuidava de crianças com necessidades especiais. Até que, quando deu por si, já estava dando aulas, em locais improvisados, para meninos de rua. Quando viu, oito de seus alunos foram assassinados na chacina da Candelária em 1993. Ela observou o que aconteceu, sentiu a dor de ter perdido oito crianças, colocou a tristeza no bolso e seguiu. Criou a própria pedagogia para ensinar crianças traumatizadas e viu essa pedagogia sendo utilizada na Europa, na África e na América Latina. Ela já não estava fazendo somente algo pelo seu país. Ela já trabalhava – e ainda trabalha – por todas as crianças do mundo. Ela é Yvonne Bezerra de Mello, a criadora da pedagogia Uerê-Mello e coordenadora executiva do projeto Uerê, que funciona na favela da Maré, no Rio de Janeiro. Yvonne concedeu uma entrevista exclusiva à ANF e falou a respeito de suas perspectivas sobre assuntos de relevância no cenário nacional e, principalmente, sobre a maior arma de transformação do mundo: a educação.
Agência de Notícias das Favelas: O que te motivou a criar esse projeto e por que a Maré?
Yvonne Bezerra de Mello: “O Uerê já era um antigo sonho desde que eu era pequena. Comecei no trabalho voluntário quando tinha 13 anos de idade, sempre trabalhando com crianças carentes onde quer que eu estivesse. O Projeto Uerê é uma consequência da Candelária. Quando aconteceu a chacina eu trabalhava com grupos na rua, uma escola sem portas e nem janelas e depois me vi com aqueles sobreviventes sem saber o que fazer com eles. Então, o governo abriu o abrigo Ayrton Senna, na Mangueira, que hoje encontra-se fechado. Ali, as crianças não ficavam. Em seguida, fui para um barraco no morro do Cachoeirinha, comecei a trabalhar e organizar as crianças, porém não dava para ficar ali a vida inteira. Um dos meninos tinha uma mãe que morava numa favelinha no Mangue, a favela do Coqueirinho, que tinha umas quinhentas pessoas. Fui lá e vi o viaduto. Eu decidi que era ali mesmo que iria fundar a primeira escola. Aí, fizemos uma escola debaixo do viaduto. Quando eu vi, o projeto já tinha duzentas crianças. Começamos a fazer os arranjos para ter água e eu fiquei ali por quatro anos, até que aquela favela foi tirada dali pelo programa Morar Sem Risco e foi transferida pra Maré. Nisso, eu vi a oportunidade de abrir uma escola de verdade. Então foi assim que começou o Uerê.”
ANF: Quais as dificuldades encontradas?
YBM: “Todas. Primeiro, a prefeitura quis fechar a escola na rua, mas o pessoal não deixou. Ali não tinha patrocínio porque ninguém ia patrocinar uma escola na rua, mas, depois dos artigos sobre a Candelária e com as minhas entrevistas na televisão, um americano viu uma das reportagens e me ligou perguntando do que eu precisava. Eu disse que precisava de uma casa. E assim eu consegui a primeira casa aqui (na Maré). Tinha 45 metros quadrados e 150 crianças pra colocar ali. Eu dividi em turno e, assim, fluiu.”
ANF: Como você lida com as acusações que muitas pessoas te fazem, dizendo que você está “ensinando bandido”?
YBM: “Ah, isso é normal numa sociedade racista que não se livrou disso ainda. Para muitas pessoas, principalmente da zona Sul ou pra quem é um pouco mais rico, o pobre é bandido e acabou. Pra essas pessoas, os meninos são todos iguais, não existe distinção entre eles e todos aqueles que roubam, matam etc.
ANF: Sua história se encontrou, um dia, com a do nosso fundador, André Fernandes. Como foi?
YBM: “Isso foi em Vigário Geral. A Cristina Leonardo, que desenvolvia um projeto na Candelária, tinha uma ONG e atuava em Vigário Geral e eu estava sempre lá, com ela. Aí eu conheci o Caio Ferraz e o André Fernandes, e logo ficamos amigos porque os princípios e as lutas eram as mesmas. Só que, naquela época, a gente não sabia como agir. Era só falar e berrar contra o status quo, contra a polícia, contra a opressão e contra a matança de meninos. Isso faz 25 anos e não mudou! As minhas falas na época da Candelária poderiam ser transcritas pra hoje sem problemas porque não mudou em nada. E assim, André e eu ficamos muito amigos. Depois nós tivemos um projeto juntos no morro Dona Marta, a Casa da Cidadania e, desde então, estamos sempre juntos.”
ANF: Nesses 20 anos de luta, o que te deixou mais feliz?
YBM: “Foi o fato de eu poder implantar a pedagogia que eu escrevi. Uma pedagogia pensada nos anos 70, no meu doutorado, quando eu trabalhei na África, nos países em guerra. Na época, era o sul do Sudão, a Etiópia, Angola e Tanzânia. Constatei que crianças que vivem em zonas de guerra não aprendem. Elas são bloqueadas de várias maneiras, o que impede o armazenamento correto de informações. Comecei a escrever, com base nisso, minha pedagogia e ela tornou-se política pública no Rio de Janeiro durante oito anos, na época do Paes. São duzentas escolas no Brasil e cinco na Europa que usam essa pedagogia de forma integral ou parcial, sendo que, na Europa, com crianças refugiadas. Então, o que me deu mais prazer, foi provar que, apesar de você estar num lugar muito ruim e violento, é possível educar com qualidade. Foi muito bom provar pras autoridades que é possível; eles não fazem porque não querem. Além disso, é uma grande alegria ver as crianças melhorarem.”
“Aqui, eu não tenho violência, não tenho bullying, não tenho preconceito e as crianças estão aqui felizes e aprendendo!”.
ANF: O que te deixou mais triste nessa trajetória?
YBM: “A incompreensão da sociedade, a falta de políticas públicas para a infância e juventude no Brasil, porque aqui, crianças e jovens parecem não existir, a implementação do ECA, que nunca foi feita totalmente, e as crianças que a gente perde. Uma tristeza muito grande é quando uma criança some ou, como já aconteceu, entra para o tráfico. Eu sempre me pergunto ‘o que deu errado?’. É sempre uma pesquisa constante de quem trabalha nesse meio de educação comunitária.”
ANF: O que você pode dizer sobre o caso do Marcus Vinícius, menino que morreu por conta da inaptidão da polícia?
YBM: “O que acontece em todas as comunidades é que você tem uma zona onde nada funciona. O serviço público não funciona, certos lugares são tomados pelo tráfico de drogas e você tem operações policiais sem nexo, sem pé e nem cabeça. Não tem necessidade desse tipo de operação, que é pra pegar quem? Ninguém! Porque eles têm o mandado de prisão, mas não sabem onde o sujeito está. Enquanto eles fizerem isso, vai morrer gente inocente; não tem jeito, porque você não consegue se proteger. Eu tenho uma placa escrita ‘escola! Não atire! ’ porque os helicópteros saem atirando e não querem saber quem está aqui embaixo. Isso é um absurdo, isso é falta de estratégia da polícia. No ano passado tivemos 159 dias de tiroteio na Maré. Como as pessoas podem viver assim?
ANF: Sobre a educação no Brasil, o que mais você pode dizer?
YBM: “Eu acho muito ruim. Nós estamos há cerca de 20 anos no 89° lugar no ranking da educação mundial. Isso quer dizer que cerca de 70% dos alunos da rede pública brasileira não terminam o 9° ano sabendo o que precisam saber e existe uma grande evasão no ensino médio. É um ensino que não instrui, ou instrui mal. Hoje, eu percebo que a parte cognitiva das crianças piorou muito. São crianças zeradas de conexão, que não têm como render em sala de aula.
ANF: O que você acha do ensino tradicional?
YBM: “É algo que te faz ficar sentada numa cadeira o dia todo, não há um diálogo constante. É um ensino que não ensina a pensar, os alunos não podem expor suas ideias de maneira que elas sejam avaliadas e melhoradas. É um plano governamental para formar uma massa de ignorante, que, na hora do voto, servem para a manutenção do status quo político que temos. Não existe leitura da realidade ali. A conivência da elite brasileira com o status quo é muito grande e isso tem que mudar! As pessoas dizem que educar é papel da família. Mas e quando não se tem família? Como faz?”
ANF: O que você acha dessa política de segurança no nosso estado?
YBM: “A intervenção federal na cabeça de muitas das pessoas, significa que vão ocupar as favelas e tirar todos os bandidos. Mas não é isso. A intervenção federal seria uma estratégia pra tirar a banda podre da polícia e conter o tráfico de armas e de drogas, mas isso não aconteceu. A violência, no geral, aumentou muito. Por quê? Falta de estratégia! Fora o dinheiro que deveria ser investido na intervenção, mas que não chegou ainda.”
ANF: Você já conquistou seu sonho com o projeto ou tem mais para conquistar?
YBM: “O meu sonho é expandir a pedagogia, já que ela funciona bem. A escola já tem 400 alunos, é um bom número. A Uerê é uma escola-modelo, pra mostrar que a educação pode funcionar. Aqui, eu não tenho violência, não tenho bullying, não tenho preconceito e as crianças estão aqui felizes e aprendendo. Isso significa que é possível.”
Matéria publicada na edição de julho de 2018 no jornal A Voz da Favela.