Espada de São Jorge

Imagem: Arquivo pessoal

Eu sou descendente Zulu
Sou um soldado de Ogum
Um devoto dessa imensa legião de Jorge
Eu sincretizado na fé
Sou carregado de axé
E protegido por um cavaleiro nobre

Terminei a leitura de Macumba cantarolando com Zeca Pagodinho. Rodrigo Santos escreveu esse livro numa prosa cativante, li num fôlego até metade e noutro até o fim. Um romance policial ambientado do outro lado da poça como troçam alguns cariocas, mas que de Niterói e São Gonçalo salta até casa grande e senzala não tão distantes no tempo, vai e vem das selvas de África à nossa selva urbana, do Aiyé à Orun que se interpenetram tudo junto e misturado.

Nem o título ou tampouco as principais personagens esclarecem logo que tema ou para onde fluirá drama e trama. Tecido sendo fiado de três personagens maiores: um exuberante sacerdote africano, talvez do século 17; um dedicado evangélico investigador da polícia; uma também exuberante e espirituosa filha de Iansã. Não há notas explicativas, referências bibliográficas, aparato crítico ou catequese alguma, graças a Olorum.

Nos encontros oniricamente concretos, personalidades, trejeitos, funções, elementos arquetípicos das principais entidades se apresentam suavemente ligados pelo fio condutor da trama. Preto Velho e Pombagira, Exu, Oxum, Iansã, Omolu, Iemanjá, Xangô, Oxóssi, Ogum e Oxalá. E também toda teologia e liturgia de giras, pontos cantados e riscados, defumações, ervas, comidas, orações, sacramentos e muito mais estão presentes. Desde que conheci Verger não via uma apresentação tão lisa do Candomblé e da Umbanda.

Pinço um ponto pra comentar, senão meu artigo se expandiria maior que Macumba; como pastor queria escrever sobre diálogo interreligioso. Mas prefiro ir ao personagem que mais me atraiu, Akèdjè. Somos irmanados de alguma forma. Talvez nesse Dia dos Pais veja nele um próprio pai parecido com meu pai na carne: brilhante e sombrio, fraco e potente. E um irmão no espírito: sacerdote e vocacionado, amores e dores.

A jornada de Akèdjè me lembrou também de Jó, personagem da mais antiga narrativa bíblica. Falarei sobre Jó em outro momento, o que nos interessa aqui é a semelhança entre os tipos literários e também existenciais: alguém próspero e feliz cai numa desgraça absoluta. Qual posicionamento seguirá diante da vida miserável, da ausência do que mais lhe valia… Será na direção da omissão coitadista, do ressentimento, da agressividade e do ódio? Seu fim e finalidade será destruição ou reconstrução?

Se for purista recomendo parar de me ler nesse ponto e ler Macumba antes, entregarei mais spoiler. Akèdjè vinha duma linhagem de nobres babas, líderes respeitados na tribo e cercado por sorrisos das bênçãos que sua presença significava a todos. Mestre das coisas divinas, aquele poeta do além que entregava as palavras e gestos sagrados testemunhando a abundância acontecer: num instante tudo ruiu, a violência se tornou chicote e pau de arara.

Em sonho horrível vê tribo, vida, família, tudo destruído. Choro, sangue, covardia, tristeza, morte. Traição dos amados orixás, de homens pretos e pálidos. Ao abrir e girar dos olhos, no porão fétido de uma galé portuguesa constata que a vida se tornara mesmo pesadelo. No Brasil sua nova realidade escravizado: correntes e açoites, um ser menos que bicho aos olhos de senhores e feitores. O que era fé torna-se primeiro tristeza, depois ódio e furor vingador. Vida terrena dura e dramática, assim como na hora de sua morte, amém triste…

Desencarnado, dá primeiro passo na direção de sua integração e integridade espiritual; e segundo passo descobrindo como uma linda dança e movimento de energia rege, sustém, penetra, fortalece e alegra todos os seres e todos os mundos. Saber universal nas culturas e religiões desde sempre, em África e para seus herdeiros nomeou-se Axé. Sem perceber em guerra consigo, fugiu o quanto pôde do próprio destino estabelecido em sabedoria e luz: seu passo seguinte foi alimentar ódio e maldade por séculos.

Mas Macumba é basicamente uma história de amor. Como crente esperanço e creio em amores e ressurreições, em gratidão e Adupé. Último passo de Akèdjè sorridente, dormente e potente virá da espada de São Jorge. Espada para eliminar nossos dragões de Preconceito e Ignorância, fazer aquele corte que nos aproxima do Todo. Despertar-nos para a miscigenação sincrética que é nosso povo e todos nós, para vivermos nossas culturas, fés e amores, dontem e de hoje. Temos esperanças para o Amanhã nunca e para sempre, Axé Amém!