A confusão era tremenda, mas normal daqueles momentos que antecedem o início de um grande show. Reunir uma seleção brasileira de gigantes da MPB para uma celebração de final de ano parecia ótima ideia, mas não era moleza. Acabou sobrando pro síndico, organizar a bagunça. “Não tem caô mermão, no final sobra pra preto, pobre e gordo carregar o piano. É F*#@!” . E dando uma talagada num pote de água benta e uma baforada num baurete colhido nos campos do Senhor, Tim Maia do Brasil adentrou o palco onde a banda Seroma Racional tentava se ajeitar em meio à enorme parafernália de cabos, microfones, metais, percussão e cordas pra todo lado. Tim estava gordo como sempre, mas renovado, a pele rejuvenescida, os olhos brilhavam como nos velhos tempos da Rua Matoso na Tijuca.
Meio nervoso, se sentindo uma baiana de acarajé dentro daquela bata branca, Tim comeu umas laricas – toucinho do céu, papo de anjo, arroz doce, canjica – cuidadosamente preparadas pela legião de arcanjos e querubins, a postos para qualquer eventualidade. Começou a repassar mentalmente o repertório – “50% esquenta sovaco e 50% mela cueca” – daquela noite inesquecível, que faria o especial de fim de ano Roberto Carlos ficar parecendo uma festa de formatura.
Abririam os trabalhos com “A Festa de Santo Reis”, segundo Tim: “pra já pagar o jabá dos patrocinadores”. Depois a Seroma (as sílabas iniciais de Sebastião Rodrigues Maia) atacava um pout-pourri com “Imunização Racional (Que Beleza)”, “Guiné Bissau,Moçambique e Angola” e por fim “Primavera (Quando o inverno chegar)”, pra fechar o primeiro bloco numa relax, numa tranquila, numa boa.
O escrete da Seroma nesta formação especialíssima reunia o supra-sumo dos instrumentistas da MPB. Na bateria Wilson das Neves. O naipe de metais sob o comando do maestro Paulo Moura. Celso Blues Boy na guitarra, Francisco Tenório Jr. (Tenorinho) no piano e Taiguara nos teclados. Reforçando a cozinha, um recém chegado de peso: Arthur Maia, diretamente de Nikity, estreando na área, garantia o suingue e a pulsação do contrabaixo, para o deleite do Tião Maia da Tijuca.
O coro de vocalistas era divino e infernal: Elke Maravilha, Jovelina Pérola Negra, Belchior e Cazuza.O maestro Villa Lobos deu uma força, escrevendo arranjos vocais entrosados e preciosos. Além de cantar no coro, fariam números solo ao longo do espetáculo, cujo roteiro e direção cênica estavam a cargo de Luiz Carlos Miéle e Ronaldo Bôscoli, com cenografia e iluminação assinadas por outra dupla de ouro e de Hélios: Oiticica e Eichbauer.
Haveria um bloco todo dedicado à turma da Bossa Nova, cuidadosamente preparado por Miéle e Bôscoli, recheado de participações especiais: Vinícius, Tom e Elis atacavam com “Canto de Ossanha”, para logo emendar com “Regra 3” e fechando o pout-pourri, “Águas de Março” e a clássica “Garota de Ipanema”. No bis, Elis convidaria Jair Rodrigues e Simonal para relembrar os tempos do “Fino da Bossa” com uma versão atemporal de “Na tonga da mironga do kabuletê”.
O penúltimo bloco, uma homenagem ao rock brasileiro, seria comandado por ninguém mais ninguém menos do que o maluco beleza: Raul Seixas abre o set descendo pelos ares em uma carruagem alada, no grande efeito especial da noite, misturando versos de “Asa Branca” e “Blue Moon of Kentucky” em uma levada de rythim n’blues, como nos tempos do Elvis Presley fan club da Bahia. Depois chama Cazuza e Celso Blues Boy para uma canja histórica, dividindo os vocais em “Expresso da noite” e “Marginal”, 2 pérolas do underground carioca dos anos 80. Raul ainda voltava pra apoteose final – o malucão queria fechar com “Rock do Diabo”, mas Tim vetou: “corta essa aí ô Raul Seixas, vai pegar mal com a direção da casa”. Irreconhecível esse Tim Maia! Raul então encerraria o bloco com Belchior, em um dueto inédito onde emendariam 2 clássicos: “metamorfose ambulante” e “apenas um rapaz latino-americano”.
Para o bloco final, Tim Maia do Brasil voltava com tudo pra fechar a conta e passar a régua: “Do Leme ao Pontal”, “Sossego” e “Não quero dinheiro (só quero amar)”, uma saraivada de hits pra não deixar ninguém sentado na cadeira. Para o bis, voltariam todos os artistas convidados para um encerramento apoteótico com “Festa de Arromba”, em homenagem a Roberto e Erasmo Carlos.
Completando a ficha técnica do show, destaque para a equipe audiovisual: Glauber Rocha e Mário Carneiro comandavam direção e fotografia; na ilha de edição ao vivo tabelavam Borjalo e Carlos Manga; produção de Walter Clark, textos de Dias Gomes e Janete Clair, e como apresentadores Leila Diniz e Luiz Carlos Maciel.
A platéia lotada já esperava impaciente o início do espetáculo. Tim Maia dá mais um de seus esporros no técnico de som pedindo mais grave, mais agudo, mais retorno, mais tudo! As luzes se apagam, toca o terceiro final e se acendem as luzes da ribalta. Abra suas asas, solte suas feras, o show vai começar! Feliz 2019!