Estrela de xerife

Ziraldo baixou hospital e começaram os ataques nas redes sociais: “esquerdopata”, “sempre mamou na Lei Rouanet”, “ganha bolsa ditadura”, “nunca foi preso”. Fiquei assustado, embora este tipo de comportamento esteja tão na moda que mesmo o papa Francisco não escapa da acusação de “comunista”. Se Chicão, que é papa, sofre ataque deste nível, nada a estranhar que chamem Adolf Hitler de esquerdista. Ou que digam que a terra é plana. Ou que Jair e Hadade sejam transpostos da Bíblia como personagens da disputa eleitoral brasileira.

No caso particular do Ziraldo, lembre-se de que criou personagens de histórias em quadrinhos infanto-juvenis brasileiros antes de Maurício de Souza – Pererê e sua Turma, com onça, tatu, saci e muito mais da nossa cultura, disputando pela primeira vez espaço com Mickey, Donald etc. Nem havia Lei Rouanet. Era Ziraldo quem assinava, todos os anos, os cartazes da Feira da Providência organizada pela igreja católica. E desenhava para os anúncios da Caixa Econômica Federal, o que lhe rendeu acusações de servir aos militares. Sim, porque tudo isso foi durante os 21 anos de ditadura militar.

Escrevo sobre Ziraldo para falar do Brasil que está cada dia menos nosso, menos brasileiro, menos Ziraldo que, junto com a turma do Pasquim, também foi preso e embora não tenha sido torturado nem morto, ganhou na justiça o direito à reparação, como Jaguar e muitos jornalistas perseguidos. Pode-se questionar a criação da reparação, o valor, o caráter da pessoa que a recebe, mas não se deve fazer as acusações mais disparatadas sobre quem a recebe simplesmente pelo fato de recebê-la, nem atribuir aos petistas sua criação, porque a reparação vem de Fernando Henrique Cardoso, o socialdemocrata do mercado.

O que me causa espanto, de fato, é que não se ouve uma voz sequer a condenar militares torturadores, o coronel Brilhante Ustra, os assassinos civis da ditadura, o delegado Sérgio Fleury, os empresários que financiaram a repressão, Henning Albert Boilesen, ou os ladrões que metem a mão nas nossas reservas há séculos. O que me espanta é que o Brasil resiste ao tempo, o Brasil não aceita a contemporaneidade. É anacrônico. Pessoas são acusadas de serem “socialistas”, “comunistas”, “petistas” e “esquerdopatas”, como se isso fosse ilegal ou imoral. São acusações com ares de ofensa grave, o fato de manter preocupações sociais não revela maturidade política. Por mais que todos os estudos mundiais apontem para a melhor distribuição de riqueza como fator de estabilidade, segurança e felicidade de qualquer povo, no Brasil prega-se a liberação das armas para combater a violência urbana e rural.

Ninguém quer saber do que aconteceu, da história verdadeira, vivemos dentro de um viés antigo demais na sociedade brasileira, um desvio que vem do descobrimento, passa pela escravidão, as revoltas dos quilombos, as rebeliões sociais, a independência, a república. Tudo tem um sabor açucarado de ficção mal contada que repetimos de geração em geração, como papagaios. O Brasil não sabe, não quer saber e tem raiva de quem sabe.

O Brasil é o produto mais bem acabado da moderna colonização americana no mundo inteiro. De toda parte os olhos recaem sobre este pedaço de América Latina tão diferente dos demais vizinhos. O único a falar uma língua estranha, a “última flor do Lácio inculta e bela”, o que nos isola ainda mais dos irmãos hispânicos. Somos duas centenas de milhões de pessoas a torcer para que não tenhamos caráter, personalidade, vontade e soberania próprios. Cercados de hispânicos, traduzimos para o inglês mensagens no aeroporto, no metrô, no VLT, em toda parte. Fazemos publicidade em inglês, queremos ser americanos, morar em Miami, ter revólver e estrela de xerife que vem na embalagem do Toddy. Nossa cultura virou fantasma, festejamos Halloween e não sabemos quem é o Macunaíma do Mário de Andrade, ou o Tininim do Ziraldo, que é tratado como um estranho, um “esquerdopata” aproveitador. Uma lástima.