Estou anestesiado! Anestesiado estou porque morte é a palavra mais perversa de todas as línguas, ela não representa somente a passagem para outra vida, ela é ferida que não se cura…
É um soco na boca do estômago que atinge nossos corpos e estilhaça nossas almas…
A morte de alguém tão próximo e querido nos mata também, ainda que em dose homeopática. A morte é antipática!
Eis que você passa toda sua vida lutando em prol dos excluídos, das injustiças, sendo voluntário em ações para o bem, militando ao lado dos justos e em prol da defesa da democracia, dos direitos humanos e ainda buscando inspirações diárias para escrever prosas e versos tanto sobre a beleza das curvas de sua cidade quanto das mazelas da mesma e, de repente, você recebe uma notícia dizendo que um parente seu está desaparecido e possivelmente morto.
Foi exatamente o que aconteceu comigo na madrugada do dia em que o Brasil estava amanhecendo para comemorar a data de sua independência: recebi a malvada informação sobre o desaparecimento de meu sobrinho e afilhado Victor Hugo Ferraz de Sá, morador de Gramacho, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Victor era o segundo filho de minha irmã Lucia Helena Ferraz e de meu cunhado Carlos Alberto Antunes de Sá.
Comecei às 5 da manhã uma peregrinação junto com meus irmãos e amigos para tentar localizar o paradeiro dele e de um outro jovem que também estava desaparecido, numa luta insana contra o tempo. A angústia, o desconforto, a sede, a fome, a dor no peito, a vontade de ficar amoado na cama, a revolta, o pensamento vago são sensações que permeiam o corpo e alma de quem precisava agir rápido, de quem precisava falar, ouvir e — principalmente — ser ouvido. Eu precisava gritar: porraaaa, socorro!
Foram horas de tensões, ligava pra um, ligava pra outro. Socorro! Eu preciso localizar meu sobrinho e o amigo dele que também tem o mesmo nome dele. Por favor, não me peçam explicações, eu suplicava para os amigos. Por favor, não os julguem — eu tinha que dizer para todos. A pior parte da pergunta: …mas eles eram bandidos? NÃO! — eu reclamava. E mesmo que fossem, eles são seres humanos como o menino Aylan Kurdi, como o morador de rua Francisco da Praça da Sé, ou como tantos outros que nossa insana naturalização do mal tende a julgar e condenar ao limbo da História.
Todos os contatos foram feitos, sempre colocando Deus em primeiro plano, fizemos diversas buscas e nada, somente informações desencontradas. A triste confirmação do falecimento dele veio por volta das 14 horas de ontem. O corpo dele havia sido encontrado na parte de trás de um carro, num lugar ermo em Belfort Roxo. O corpo do amigo dele até agora a família não teve notícias.
O que falar para minha irmã? Como consolar o pai na hora em que ele viu o corpo do filho morto? A maioria das pessoas não têm ideia do que fazer numa horas dessas, mas eu tenho muitas. Tenho necessidade de ampliar em um alto falante gigantesco os gritos de “ai meu Deus” da minha irmã. Uma mãe que está sentindo a mesma dor das mães dos meninos da Candelária, de Acari, de Corumbiara, de Vigário Geral, de São Paulo, enfim as mães dos filhos chacinados diariamente como se fossem pragas, numa neura coletiva e numa apatia social que se fossemos um país sério estaríamos fechados para balanço. Como estas mães são pobres com filhos pobres e em sua maioria negros isso não incomoda praticamente ninguém que mora no lado solar da cidade.
A dor que minha irmã sentiu hoje é a mesma dor que sentiu a mãe do Amarildo, a mãe do menino Eduardo de Jesus, e agora está sentindo a mãe do menino Cristian de Manguinhos. Também é a mesma dor que sente a mãe de um policial que perde a vida na cruel batalha sangrenta que tem dizimado centenas de pessoas neste país.
Vivemos uma guerra que amanhã deixará mais 82 mães chorando porque seus filhos foram assassinados. E depois de amanhã mais outras 82 mães se encontrarão na mesma situação. E quando for a missa de sétimo dia da morte do meu sobrinho teremos a ultrajante soma de 574 mães que tiveram que enterrar de forma dolorosa seus filhos. E, pasmem, quando no dia 5 de Agosto de 2016 o Rio de Janeiro estiver acendendo a tocha dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, cerca de 27 mil mães terão sepultado seus filhos na guerra mais insana que a História Moderna já teve conhecimento: o extermínio de jovens pobres num dos países mais ricos do planeta.
Victor Hugo, você só foi mais um dos deserdados pela insensatez política e pela apatia de uma nação, mas eu sou seu tio, eu sou guerreiro, eu venci outras batalhas e também vencerei esta. Não desistirei de honrar o nome e a glória de nossa família. Eu que já perdi dois irmãos assassinados (um em 1986 e outro em 1989 e dois outros sobrinhos quando eu já me encontrava exilado nos EUA por conta de ameaças que sofri feitas por policiais do Rio de Janeiro), eu não esmorecerei. Não! Não deixarei que seu nome seja esquecido, não deixarei que sua breve história de vida seja apagada. Eu nasci pra ser um desbravador e continuarei sendo pela honra e pela lisura de nossa família.
Eu te amo meu sobrinho. Se eu errei, se não deu tempo de te socorrer, saiba que seus gritos estão ecoando fortemente em minha consciência. E ficarão por muito anos. Eu estou escutando você me chamar. Eu estava perto, bem próximo de ti, fiz de tudo, mas não fui capaz de chegar a tempo. Perdoe-me por ter falhado na hora em que você mais precisou de seu padrinho. Você e nem ninguém merece sofrer nas mãos de desumanos bandidos.
Só agora consegui chorar, depois de 40 horas de amargura e dor. A gotas de chuva que caem lá fora são as lágrimas dos anjos chorando comigo. Eu quero colo do meu pai e de minha mãe, mas eles não estão aqui neste plano terreno, eu preciso abraçar minhas filhas, mas elas estão morando e estudando nos EUA. Eu preciso abraçar meus amigos de lutas, mas eles também estão socorrendo outras famílias e a si próprios. Eu preciso de ajuda para confortar o coração de meus familiares e secar as lágrimas de minha irmã, por favor me ajudem… Eu não posso desistir da justiça e da paz!
Caio Ferraz
poeta, sociólogo, ativista de direitos humanos. Nascido e criado na favela de Vigário Geral. Formado em Ciências Sociais pelo IFCS/UFRJ e pós graduado em Planejamento Urbano pelo MIT/USA. Recebeu os prêmios: Nacional de Direitos Humanos, PNBE de Cidadania, Severo Gomes de Direitos Humanos, Paz pela UNIPAZ de Brasília (todos em 1995), Medalha Tiradentes da ALERJ (2013).