Entrevista: Tia Maria do Jongo
Por Júlio Barroso e Julianne Gouveia
Se perguntarem por Maria de Lourdes Mendes no Morro da Serrinha, em Madureira, Zona Norte do Rio, provavelmente, ninguém vai saber quem é. Já Tia Maria do Jongo é quase uma celebridade local. Ali nascida no último dia do ano de 1920, a fundadora do Jongo da Serrinha possui uma grande atuação na comunidade onde criou filhos e netos. Ela acompanhou de perto o nascimento do movimento carnavalesco do bairro de Madureira e descobriu, depois dos 40, que devia levar adiante os ensinamentos no jongo que lhe foram transmitidos por sua mãe e sua avó, ambas mulheres negras que viveram os horrores da escravidão no Brasil.
Na última edição do Rock in Rio, quando o Jongo da Serrinha dividiu o palco com diversos bambas no show Salve O Samba!, a vitalidade de Tia Maria impressionou a todos. Nada mal para uma senhora de quase 100 anos, que é um patrimônio da cultura do Rio e – por isso mesmo – cheia de história para contar. Conheça nesta entrevista algumas delas.
A Voz da Favela: Como tudo começou?
Tia Maria do Jongo: Eu moro na Serrinha. Nasci na… Como pode esquecer a rua onde nasceu? (Risos) Ah, na Rua Balaiada! A casa do meu pai era a última casa do morro. Ele veio de Minas, meu tio já morava aqui. Nossa casa era só plantação. Meus irmãos iam vender no Mercadão de Madureira, que, na época, era do lado de lá de Madureira. A gente colhia quiabo, chuchu… Tudo era dali. Então, a vida nossa era muito farta.
AVF: A senhora tinha quantos irmãos?
TMJ: 13. Hoje em dia, estou eu aqui, sozinha. Foi morrendo um por um. Minha mãe perdeu três pequenos. Criou dez, todos dentro do Império. O Império Serrano nasceu na Serrinha, na casa da minha mãe, com Eulália (do Nascimento), Molequinho… Deu um bocado de trabalho à gente. E, graças a Deus, foram três anos de insistência e quatro anos de vitória. O pessoal da minha casa não parava. A gente não dormia, bordando, costurando. Mas, graças a Deus, o Império foi sempre bem, sempre campeão.
AVF: Então, a família da senhora era da diretoria quando a escola nasceu?
TMJ: Quando ainda era o Prazer da Serrinha (escola de samba fundada em 1936 e considerada o embrião da tradição carnavalesca de Madureira). Mas o s. Alfredo (Costa, presidente durante toda a existência da escola) era o dono da Serrinha. Não tinha uma diretoria. Ele é que resolvia, era só o que ele queria. Então, tinha coisa que não dava certo. Teve um ano (1946) que o samba do nosso concurso era lindo, e ele não deixou cantar. Já tava prontinho, o pessoal ensaiado. O pessoal da produção também achou que aquilo não tava certo. O Molequinho falou: “Nós temos que montar uma escola de samba. Eu não aguento mais gastar um dinheirão dentro do Prazer da Serrinha pra passar uma decepção dessa”. Era uma samba bonito.
AVF: Aí, vocês decidiram fundar o Império Serrano.
TMJ: É. Diziam: “É, meu irmão, fazer escola de samba”… E ele: “Não, nós vamos fazer! Nós temos nossa família, que é muito grande. Temos o pessoal do Cais do Porto que nos ajuda, o pessoal mesmo aqui da Serrinha, que sei que vai ficar com a gente…”. E ficou mesmo.
O Império Serrano nasceu na Serrinha, na casa da minha mãe.
AVF: E como o jongo entrou na sua vida?
TMJ: O jongo não entrou na minha vida, eu que entrei na dele (risos). Eu nasci jongueira. A minha mãe era mineira. Ela já veio de Minas cantando jongo.
AVF: Era da região do Caxambu (MG)?
TMJ: É. Foi escrava até os oito anos. Minha avó era escrava, então, já tinha jongo dentro da senzala. Ela dizia que, dentro da senzala, eles já cantavam. E cantavam pra gente. Tinha jongo na Mangueira, jongo no Salgueiro.
AVF: Mas a tradição foi morrendo…
TMJ: É. Mas a gente botou as crianças pra dançar e fazer uma ala. Quantas pessoas do jongo já tinham ido? Como fazer uma ala com 4, 5 pessoas? Para eles, foi um prato cheio. Aí foram lá em casa, falaram com meu marido, que disse: “Se ela quiser…”. Fizemos um grupo, começamos a ensaiar.
AVF: Em que ano? A senhora lembra?
TMJ: Ah, isso faz muito anos… Anos 60, 70. Era casada e meus filhos já eram todos grandões quando eu fui dançar jongo.
AVF: A Serrinha acabou se tornando um centro de resistência, né?
TMJ: É, porque nós ficamos segurando, né. Ficamos e estamos lá, graças a Deus.
AVF: E como foi esse encontro com o Mestre Darcy (do Jongo)? Como era a convivência com ele?
TMJ: Ele foi criado dentro da casa da minha mãe. Era a mesma coisa que meu irmão, meu sobrinho. Foi uma vida muito boa da gente ali. Mas a gente vai morrendo, né? Vai morrendo, morrendo…
AVF: Foi ele quem teve a ideia de levar o jongo pro asfalto?
TMJ: Darcy era cheio de coisa pra fazer. Às vezes, ele vinha: “Maria! Amanhã, nós vamos pra Lapa”. “Darcy, tenho coisa pra fazer!”. “Não, vamos pra lá pra divulgar o jongo!”. Íamos eu, ele e o tambor. Naqueles bares todos ali a gente era conhecido, comia, bebia. A essa altura, eu já estava viúva, sempre andando com ele. Agora, nós recebemos um livro de uma faculdade lá em Niterói. Tem um trecho em que diz que ele era meu esposo (risos).
AVF: Arrumaram problema pra senhora… (risos).
TMJ: Ele era meu sobrinho, bem mais novo do que eu. A gente fazia aniversário no mesmo dia, só que eu era mais de dez anos mais velha.
AVF: E a Casa do Jongo nasce quando?
TMJ: Eu moro na (Rua) Doutor Joviniano. A Casa do Jongo é na (Rua Compositor) Silas de Oliveira. Eu sempre passava ali pra ir na feira, no supermercado, e via aquela casa suja, grande, boa, um prédio bem construído, mas era só sujeira. Só tinha lixo. Pensei: “Vou falar com as meninas sugerirem pro prefeito pra gente fazer um centro de saúde aqui”. Lá do nosso lado, não tem. Mas conversando com algumas pessoas, falaram que esse tipo de coisa só fazem em ruas centrais. Aí, na cabeça, veio o Jongo. A gente ficava na metade da Balaiada. Compramos um terreninho que era da minha irmã. (O então prefeito) Eduardo Paes mandou que a gente fosse lá, conversamos com ele. Ele marcou um dia de ir, viu a casa. Quando limparam, saíam caminhões de lixo.
AVF: Eu sei que a senhora é católica, mas como vê essa mudança da juventude negra, do pessoal das favelas, que hoje, muitas vezes, negam a cultura afro-brasileira?
TMJ: Acho que sempre foi assim, né? A gente é que não tem que ligar. Não quero saber se gostam ou não gostam. Eu não sou umbandista. Se me convida para uma festa, eu vou, sempre visitei. Toda religião eu aceito. Mas eu sou católica, criada dentro da igreja. Minha avó, minha mãe, minhas tias, todas frequentavam igreja em Cascadura. Todo domingo, a gente ia a pé. Atravessava a linha do trem. Não tinha padre brasileiro, era só estrangeiro, a gente não entendia a língua dele (risos). Tudo mudou.
AVF: Como a senhora vê a questão da ancestralidade?
TMJ: O jongo vai muito no espírito dessas pessoas que faleceram. Na senzala, dançavam o jongo. Então, quando bate o jongo, eles chegam ali. A pessoa que tem o dom se abala, né? Podem entrar, sair, a casa é nossa. Mas eu não sinto nada. Tem pessoas que falam pra mim: “A senhora tem um Preto Velho aí do lado”. Que bom! Ele que me olhe, né? (risos).
AVF: Enquanto estiver protegendo, está bom, né? (risos).
TMJ: Eu só quero o bem.
Publicado na edição de outubro de 2017 no Jornal A Voz da Favela