A favela do Jacarezinho mereceu a capa da revista BIO –publicação da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – deste mês, em matéria que ocupou oito páginas sobre os graves problemas causados naquela comunidade por falta de uma política da saneamento básico.
“Favela do Jacarezinho – Esgotos que transbordam, águas contaminadas e posto de saúde lotado de crianças, amostra carioca da falta de saneamento no País”. Esse é o título da matéria que escrevi depois de passar uma semana inteira dentro do Complexo do Jacaré, fotografando e conversando com as pessoas sobre as dificuldades encontradas para criar crianças em um ambiente degradado por falta de políticas públicas de saneamento.
O problema do Complexo do Jacaré não é diferente do enfrentado pelas comunidades que habitam outras favelas do Rio de Janeiro. Fiz matéria idêntica na Rocinha e na cidade de São Gonçalo, onde há promessas de obras via PAC do Saneamento, mas a realidade continua a mesma. A CEDAE também é completamente inoperante nessas comunidades.
Leia aqui a reportagem publicada na revista Bio:
“CRIANÇAS DO JACAREZINHO SOFREM COM ESGOTO A CÉU ABERTO
Luis Turiba
O farol vermelho da antiga cancela pisca. A cigarra toca alto e intermitente. A cena faz parte da rotina daquela comunidade de quase 80 mil habitantes. As pessoas param, colocam as sacolas e as bolsas no chão. Param também carros, motos e bicicletas. Vai demorar. Poucas se atrevem a tentar furar a sinalização. O trem com sua engrenagem barulhenta tem em média dez vagões e diminui a velocidade para menos de 20 quilômetros por hora. E assim, cuidadosamente, segue como um rei de ferro, impassível e senhor de si, cruzando a favela do Jacarezinho.
A comunidade ocupa 360 mil metros quadrados da Zona Norte do Rio de Janeiro. Faz fronteiras com os bairros de Engenho Novo, Rocha, Manguinhos, Caxambi e Del Castilho. O muro da antiga fábrica de G&E acompanha sua principal rua. Está a poucos quarteirões do Méier e da favela da Mangueira. É a segunda maior do Rio de Janeiro – só perde para a Rocinha. (ver em anexo história da ocupação daquela área)
O metrô também cruza o Jacarezinho – só que por cima. Passa no telhado da Escola de Samba Unidos do Jacarezinho, onde uma super-estátua de São Jorge protege os moradores e seus freqüentadores. O trem não. Passa raspando entre barracos, vielas, pontes, becos, moradores e muitos usuários de crack que perambulam como zumbis entre os trilhos.
O trem da Central do Brasil não está só ao cruzar o Jacarezinho. Há outras duas trilhas que marcam a comunidade: são os rios Jacaré e Salgado, que nascem no Maciço da Tijuca, como tantos outros, e descem rumo à Baía de Guanabara. Esses rios hoje são atualmente um dos maiores problemas para a população local, pois trazem insegurança, um insuportável mau-cheiro e, principalmente, um cardápio de doenças para milhares as crianças. Esse é um assunto que assusta as autoridades médicas que trabalham na região.
Esses “rios” (chega a ser um exagero de linguagem chamá-los assim com palavra tão eco-significativa, pois sabemos que um verdadeiro rio é caldoso, barulhento, com suas águas correntes e múltiplas, pois como escreveu Guimarães Rosa, “as águas de um rio são sempre diferentes), na realidade, se transformaram em verdadeiros valões de esgoto a céu aberto. Neles são despejados todos os veios da antiga rede de esgotos do Jacarezinho, que tem mais de 30 anos, é insuficiente e vive estourando aqui e ali.
Aliás, esse história de esgoto a céu aberto é um problema crônico que atinge a praticamente todas as comunidades pobres do Rio de Janeiro. Herança maldita das ocupações irregulares e do eterno descaso das autoridades (especialmente prefeitos). Para enfrentá-lo, o governo federal criou o PAC do Saneamento, mais o programa não consegue se concretizar.
Assim, o esgoto a céu aberto é uma fonte de doenças variadas, especialmente para as crianças que moram e vivem em favelas, na Baixada Fluminense e também em São Gonçalo, segunda maior cidade do Rio, onde a rede de esgoto é praticamente inexistente.
No Jacarezinho não é diferente. Crianças brincando nos rios-valões, jogam bola no lugar conhecido como “Xuxa”, onde casa foram derrubadas e tudo se mistura: lixo, restos de comida, entulhos, fezes de animais. Quem anda pela favela,a pé ou de moto, vai encontrar manchas de esgoto que surgem assim repentinamente nas calçados dos becos. E elas fedem. Muito.
Aliás, a presença de esgoto a céu aberto é apontada como a degradação ambiental mais freqüente no Brasil, à frente do desmatamento e das queimadas, segundo relatório do Programa das Nações Unidos para o Desenvolvimento – PNUD. Diz o relatório que “os dejetos lançados inadvertidamente em fossas abertas, rios, lagos ou mesmo na sarjetas tornam-se a causa de doenças que anualmente levam milhares de crianças à morte. O problema ainda é um entrave ao desenvolvimento econômico de muitos municípios, que, devido à falta de saneamento, perdem em parte seu potencial turístico e outras atividades como a pesca, por exemplo.”
COMO OS MORADORES ENFRENTAM O PROBLEMA
“Já pesquei e mergulhei muitos nesses dois rios, quando era criança”, conta o advogado Antônio Carlos Ferreira Gabriel, o “Rumba” Gabriel, presidente da Associação dos Moradores do Jacarezinho.
Rumba nasceu e foi criado na comunidade. Agora, depois de se tornar mais um descrente do PAC do Saneamento, Rumba está organizando uma manifestação da comunidade por “Saneamento Básico” na Avenida Suburbana, uma das mais importantes da Zona Norte do Rio. “O problema aqui é secular. Não muda; falta infra-estrutura para as comunidades pobres do Rio de Janeiro. Não sabemos quando esse modelo irá mudar”, completa ele, que chegou a participar do lançamento do PAC do Saneamento para a favela do Jacarezinho, quando a presidente Dilma prometeu que serão investidos R$ 609 milhões em infraestrutura, aberturas de vias e conjuntos habitacionais do “Minha Casa Minha Vida. Os conjuntos estão sendo construídos às margens da Avenida Suburbana, mas os projetos de infraestrutura ficaram no papel.
A líder comunitária Stefânia Ferreira, que mora a mais de dez anos lá, não acredita em milagres governamentais, mas se queixa de “muito mosquito, fedor, água contaminada e doenças para a criançada”. Ela conta a seguinte história:
“Crei três netos que são hoje quase adolescentes. Agora tenho mais uma pequenininha para criar. No beco em que morei e moro ainda há esgoto a céu aberto. Comprei galochas e botas para as crianças usarem quando saiam de casa para brincar ou ir a escola. Vestiam as botas e só perto da escola colocavam os tênis. Assim, evitavam o contato direto com o esgoto a céu aberto e o lixo que é jogado nas ruas da comunidade.”
Mesmo assim, os netos da Dona Estafânia “Shucalho”, como é conhecida por ser ritmista da escola de samba, sempre tiveram problemas com picadas de mosquitos que causavam manchas pretas na pele.
A pediatra Carmem Piraçinunga, que trabalhou muito tempo em comunidades cariocas, afirma que o esgoto a céu aberto é fonte de uma infinidade de doenças infantis tais como verminoses, hepatites, febres e vários tipos perebas de pele. O problema é confirmado pelas estatísticas dos dois postos de Saúde que funcionam no Jacarezinho. Muitas mães e pais com bebês de colo procurando soluções para os problemas causados pelo esgoto a céu aberto, especialmente diarréias, verminoses e hepatite A.
A gerente do principal Posto de Saúde do Jacarezinho, Dra. Cynthia Guerra nos encaminhou para o chefe da Enfermaria, Dr. Rafael Andrade, que trabalha ali desde 2011 e conhece bem o problema: “Doenças respiratórias nas crianças menores de seis anos. Doenças de pele em todas as idades. Molusco e perebas também são constantes. No outono e inverno, aumentam os problemas com doenças respiratórias”, conta ele.
A agente de Saúde Jussara Maria Ferreira faz parte de uma das sete equipes que trabalham com as crianças da comunidade do Jacarezinho. Segundo ela, uma das principais preocupações desses agentes é com a orientação para o tratamento da água servida no local. “Muita água contamina nas torneiras, mais fonte para inúmeros tipos de doenças para nossas crianças.” Ela define bem, com uma metáfora, a situação dos que trabalham na comunidade com mais de 10 mil crianças em convívio diário com o esgoto a céu aberto: “aqui, trabalhamos enxugando gelo”.
MOSCOUZINHO DAS FAVELAS
A comunidade do Jacarezinho tem uma caixa d`água de 700 mil litros/cúbicos, mas a bomba nunca funcionou. Segundo o censo do IBGE de 2010, vivem ali cerca de 37 mil moradores, mas extra-oficialmente estima-se que a população já ultrapassou a 80 mil pessoas.
A UPP já chegou por lá com uma tropa de 550 soldados bem armados. O comércio de drogas, que era às claras e também bem armado, agora já não é tão cinematográfico. Os serviços públicos básicos da CEDAE, Comlurb e Light deixam a desejar – basta olhar os “murunduns” de gatos e fios em cada esquina. São oito escolas que recebem cerca de sete mil alunos – três creches – a última leva o nome do Luiz Carlos da Vila – e dois CIEPS, cada um com uma média 700 alunos.
“As crianças do Jacarezinho precisam, necessitam freqüentar escolas. Se ficarem soltas nas ruas, nos becos, nos rios, são presas fáceis para a marginalidade”, afirma o líder comunitário Rumba Gabriel.
A ocupação do Jacarezinho, segundo ele, data de 1910, quando ali existia uma fazenda da família Vargas. Por volta dos anos 30/40 a região começou a viver um processo de industrialização. Várias empresas se instalaram nos bairros que cercam o Jacarezinho. A G&E ocupou um terreno superior a 60 mil metros/cúbicos em Maria da Graça. São Cristovão passou a ser o bairro com maior número de fábricas do Rio de Janeiro.
Os operários procuravam morar mais próximos de seus trabalhos e o Jacarezinho passou a ser uma grande alternativa. Juntos com os operários, vieram os sindicatos e as instituições de classe.
Com o golpe militar de 1964, instalou-se no Jacarezinho diversos aparelhos de resistência contra a ditadura militar. Além dos operários, professores, intelectuais e vários outros militantes ocuparam a comunidade. Criou-se a Federação das Associações das Favelas do Rio de Janeiro – FAFERJ. Líderes como Ireneu Guimarães, Nilson Santos Brito (Santinho) e o lendário padre Nelson desenvolveram diversos projetos sociais. Nasce desses projetos a maior igreja católica dentro de uma favela e várias outras evangélicas. A escola salesiana Alberto Monteiro de Carvalho. Com tantas ações sociais, Jacarezinho passa a ser conhecida como “Moscouzinho das Favelas”.
SOBRA ÁGUA, FALTA REDE DE ESGOTO
Comprovado: somente 1/3 dos municípios brasileiros têm água potável e rede de tratamento de esgoto, segundo informações do Ministério das Cidades.
Em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, por exemplo, toda vez que chove o Rio Botas transborda e a precária rede de esgoto estoura, misturando-se com as águas das chuvas causando pânico, desespero e medo na população que vie em torno do rio.
Mais um retrato da vergonha que é o saneamento do nosso estado está em Belford Roxo, onde moradores do Barro Vermelho sofrem com a falta d’água, enquanto litros e litros de água tratada jorram de um reservatório da Cedae.
Os exemplos se multiplicam. Moradores da Rua Marechal Galdino, em Santa Cruz, na Zona Oeste da cidade, são obrigados a conviver com um vizinho desagradável: o esgoto. E, toda vez que chove, ele bate na porta da funcionária pública Joyce Dias, de 28 anos. Moradora do bairro desde que nasceu, ela conta que convive com o valão há pelo menos dez anos. Segundo Joyce, parte dele está encanado, porém o trecho próximo ao número 389 fica a céu aberto.
“O valão passa por toda a rua, e uma parte do esgoto fica exposta, não tem manilhas. Com a chuva, a rua alaga e a água suja invade a nossa casa. Vivo no mesmo local há 28 anos e só vejo o problema piorar. Estou indignada — disse.
Joyce conta que já reclamou na prefeitura várias vezes. Segundo ela, vizinhos chegaram a fazer um mutirão para tentar limpar o valão, o que não resolveu o problema. Com isso, os moradores têm de conviver com o risco de doenças e o mau cheiro.
“A casa da minha vizinha todo dia fede a esgoto. Ela lava, lava, e não passa. Mesmo em dia de domingo, que o movimento é grande, o bar aqui perto não abre por causa do fedor — contou Joyce, que também reclama da falta de pavimentação da calçada.
Em nota, a prefeitura informou que a Fundação Rio–Águas elaborou projeto de canalização do curso d’água que passa pela Rua Marechal Galdino, em Santa Cruz, cujo orçamento está estimado em R$ 4 milhões, a fim de melhorar a drenagem local.