Vamos recapitular: no dia 14 de março de 2018, horas antes de cometerem o crime, o miliciano Élcio foi buscar o colega de armas Ronnie Lessa em casa para o serviço sujo. Dirigia o mesmo carro usado na execução da vereadora Marielle Franco e identificou-se na cancela do condomínio Vivendas da Barra, onde também mora “seu Jair”. O porteiro deduziu que ia visitá-lo, como em outras ocasiões. Ou o próprio Élcio deu destino errado para despistar, quem sabe? Interessa é que o porteiro reconheceu a voz de “seu Jair” ao telefone.
Graças aos informantes do jornalista Luís Nassif, aprendemos que o condomínio não tem interfone porque o sistema sai mais caro do que ligar para telefones fixos e celulares dos moradores. É bem possível que Bolsonaro tenha respondido à ligação em Brasília, pelo “Siga-me” e, numa hipótese razoável, mandou-o ligar para Ronnie Lessa. Em outra hipótese, liberou ele mesmo o acesso – vai saber… Interessa é que o porteiro sabia que aquelas pessoas eram amigas e se frequentavam.
Bem, vamos adiante: Bolsonaro negou ter atendido ao interfone, que de fato nem existe, porque estava em Brasília fazendo arminha com as mãos na Câmara dos Deputados e com a presença registrada. Bandido esperto, não disse nada sobre o “siga-me”. Pergunta para os investigadores: o celular estava programado para receber as ligações feitas para sua casa só no dia da morte de Marielle, ou era hábito ele atender sempre aos chamados residenciais?
São questões essenciais para desnudar as relações incestuosas dos milicianos com a família presidencial. Sem respostas convincentes, tudo foi protegido sob sigilo e uma vez veiculado no Jornal Nacional provocou a irada gravação de Bolsonaro na Arábia Saudita contra a Globo e o governador Witzel. Mas, como o papel de vestal não lhe cai bem, “seu Jair” extrapolou na mensagem em vídeo: “Eu não tenho motivo para matar ninguém”.
O que se espera de um presidente da república em casos como este é que condene o crime brutal, lamente a demora na apuração policial, solidarize-se com a família; enfim, que não abra a porta para assassinatos justificáveis. Senão, vem a pergunta: em que situação “seu Jair” teria motivo para matar?
O discurso é fiel à lógica dos bandidos travestidos de patriotas sinceros. O distinto público tolera qualquer coisa, o silêncio dos omissos veste-se de olímpica indiferença, como constatou o editor do The Interpect, Leandro Demori, depois de mais de 70 reportagens da Vaza Jato: “Cadê as instituições que já deveriam ter agido?”
Hoje sabemos que a descoberta da presença de um dos assassinos de Marielle e Anderson horas antes do crime no endereço de “seu Jair” se deu há coisa de um mês, e que uns poucos privilegiados foram informados, entre eles o presidente da república, o do Supremo, o procurador geral (recém empossado e já todo borrado) e o indigesto governador do Rio.
A reação de Bolsonaro segue o mesmo roteiro paranoico do divulgado dias antes com o leão e as hienas. Sem montagens grotescas, ele ataca a Rede Globo e o governador como responsável de ter vazado a notícia para a emissora. Imprevidente e impune, adianta também o resultado do novo interrogatório: o porteiro mentiu.
Para enfeitar ainda mais o picadeiro, ele próprio mandou recolher a gravação dos telefonemas da portaria das Vivendas da Barra. Questionado, explicou ter se antecipado apenas, antes que o áudio fosse adulterado. O grupo de juristas e advogados chamado Prerrogativas estrilou em nota distribuída no Dia de Finados:
“A declaração do presidente Jair Bolsonaro de que se apoderou de provas da investigação dos homicídios que vitimaram Marielle Franco e Anderson Gomes assume máxima gravidade. Trata-se de reconhecimento de crime, de interferência ilícita em apuração criminal, voltada assumidamente a resguardar interesses pessoais e familiares, o que exorbita nitidamente das competências do cargo exercido”.
Bolsonaro acionou Moro, que mobilizou a Polícia Federal e defende agora a federalização de toda a investigação, há um ano e meio se arrastando no Rio das milícias. Manobra para esvaziar o governador do estado e em breve anunciar que a vereadora e seu motorista cumpriram um “pacto de morte” num crime passional. Quem discordar vai pra ponta da praia.
Na real, especula-se que o desespero do clã Bolsonaro advém de uma “bomba” prestes a explodir comprometendo a todos eles, segundo a mídia. No Supremo Tribunal Federal, o decano Celso de Mello soltou nota crítica sobre o vídeo dos bichos que conclui com o seguinte parágrafo:
“É imperioso que o Senhor Presidente da República – que não é um “monarca presidencial”, como se o nosso País absurdamente fosse uma selva na qual o Leão imperasse com poderes absolutos e ilimitados – saiba que, em uma sociedade civilizada e de perfil democrático, jamais haverá cidadãos livres sem um Poder Judiciário independente, como o é a Magistratura do Brasil.”
O judiciário também está de saco cheio das explosões de grosseria e falta de civilidade do presidente e dos filhos. Suas próximas providências importantes poderão ser a volta da presunção de inocência até o trânsito em julgado e a libertação de Lula, com o reconhecimento oficial da farsa processual conduzida por Sérgio Moro, agora mais conhecido na Barra da Tijuca por “faxineiro da casa 58”, a de “seu Jair”.
A percepção da nossa justiça no exterior, que nunca foi boa, mas tampouco esteve tão ruim, pode começar a melhorar a partir daí, e quem sabe abrir um horizonte para a volta à democracia.
Aliada a esta reação da sociedade brasileira está ainda a fadiga causada por incêndios amazônicos, óleo no mar, lama nas Minas Gerais e o acirramento da intolerância que amplia a violência nas cidades e no campo contra mulheres, gays, índios, negros e desempregados. O Brasil está desapontado com a gente que tomou o poder no golpe de 2016 e o consolidou na eleição de 2018, com a velha bandeira do combate à corrupção e ao comunismo.
Exemplos ao nosso redor apontam mudanças na Argentina, Chile, Equador, Peru, Bolívia e até a Colômbia mais americanizada do que o Brasil, onde a ex-senadora Cláudia Lopez, da Frente Verde, acaba de se eleger prefeita de Bogotá, com 35% dos votos. Lésbica, defensora das minorias, fez uma declaração que mostra a que vem:
“Ser mulher não é um defeito, ser uma mulher de caráter firme (…) não é um defeito. Ser gay não é um defeito, ser filha de uma família humilde não é um defeito”. Palavras dignas de Marielle Franco.
Atento aos ventos vindos dos Andes, Armínio Fraga, presidente do Banco Central de FHC e administrador de fortunas internacionais, escreveu na Folha de S. Paulo que “as pessoas estão descrentes de tudo e todos, e sentem que se exige mais sacrifício dos que menos podem, não sem razão. Quero discutir neste espaço como criar genuínas oportunidades para os que menos podem e como exigir dos que mais podem uma contribuição relevante.”
A preocupação da fina camada mais privilegiada da sociedade revela a urgência de se corrigirem no mundo globalizado as distorções históricas do liberalismo e seu deus-mercado. Este é o recado das ruas, sobretudo as chilenas, onde o modelo em implantação no Brasil atual por Paulo Guedes desaba estrondosamente.
Só não enxergam o cenário o próprio Guedes, Bolsonaro e os parasitas de sempre do estado brasileiro. Da morte de Marielle ao efeito dominó da economia na América do Sul, as condições são favoráveis como nunca à responsabilização e ao expurgo dessa gente grossa, ignorante e genocida que aí está.
Alguém explica por que “seu Jair” vai a reuniões no Oriente Médio sem um intérprete de árabe? Cozinha Nissin Miojo no quarto do hotel em Tóquio? Faz piada com o tamanho do pênis de um turista oriental? É capaz de levar na bagagem da sua comitiva 39 quilos de cocaína? E admite publicamente que não tem motivo para matar?