As favelas surgem associadas ao processo de urbanização no Rio de Janeiro. Elas estão intrinsecamente ligadas à abolição da escravatura. A coroa portuguesa passou o século XIX preparando e organizando como se daria a propriedade das terras no Brasil, pois, à época, este era o maior meio de produção local – portanto, o modo pelo qual se acumulava de riquezas.
A partir de 1807, o Brasil vive a pressão, por parte da Grã-Bretanha – a grande potência mundial da época, pelo fim do tráfico dos povos de África para as Américas, o que só ocorreu em 04 de setembro de 1850 após vários navios portugueses e brasileiros serem detidos. Eusébio de Queiroz, autor da Lei que leva o seu nome, propôs a proibição e obteve sua aprovação.
A coroa portuguesa não estava desavisada da proibição desse comércio, que lhe rendia divisas, e, aos poucos, foi tomando medidas que assegurariam a manutenção da organização social e econômica no país. No mesmo ano de 1850, fora decretada a primeira Lei de Terras, segundo a qual poderiam ser proprietários aqueles que pudessem comprá-las. Ou seja, estava por perpetuar a exclusão de todos que não tivessem meios financeiros para tanto – leia-se: escravizados e indígenas.
Desde então, já se desenhou e formalizou, do ponto de vista jurídico, as desigualdades que se intensificaram nessas terras. Com a abolição da escravidão em 1888, os escravizados foram jogados à sorte do destino, pois não havia mais necessidade do uso de sua força de trabalho. Muitos não tinham para onde ir e se amontoavam em qualquer localidade. Estava posto o futuro daquela população que edificou esse país, cuja sina passara ser as margens da sociedade e que, em pouco mais de quatro décadas, já compunha as periferias dos grandes centros urbanos.
Na Cidade Maravilhosa, parte da periferia passou se referenciar por “favela” a partir da ocupação do atual Morro da Providência por combatentes vindos da Guerra de Canudos (1896-1897), que se juntaram a negros nascidos libertos pela Lei do Ventre Livre de 1871, além de outros negros e demais pessoas pobres. A origem do nome se deu pela existência de uma planta característica no local, que teria sido reconhecida pelos combatentes como sendo a planta chamada “favella”, típica da região da guerra.
Além dos morros, em pouco tempo, as favelas passaram a compôr outros territórios, inclusive planos. Dessa forma, a territorialização urbana no Rio de Janeiro se confunde com a sua constituição. Uma é intrínseca à outra. Basta recorrermos às referências da história do município, através de livros, obras de artes e documentos, que encontramos essa associação.
Sabemos que as favelas são locais de produção de saberes, artes, religiões, porém, esse reconhecimento recente não deve nos isentar de apontar o quão elitista foram e ainda são os nossos governantes. As favelas se levantaram sem nenhum tipo de investimento em infraestrutura, seja de moradia, saneamento básico, água potável. As pessoas ali foram jogadas por não existirem melhores condições de habitação. Se, hoje, estes são lugares para onde até os intelectuais têm direcionado suas pesquisas, é porque essa população resistiu bravamente contra todas as investidas de destruição de seus domínios.
Sim, a favela e sua população são sinônimos de resistência, que vai desde a luta moradia ao direito institucional mais básico: à vida. Pode parecer óbvio para quem está de fora, mas essa parte da população ainda luta para simplesmente viver. As elites e seus governos seguem com o projeto de exterminar as favelas, seja em nossa história recente, seja pelo o ímpeto que hoje vem através das Forças Armadas do Estado brasileiro, que envolvido em uma suposta guerra às drogas, tem produzido um verdadeiro extermínio da população negra e, em sua maioria, jovem.
Sabemos que não se trata de guerra para pôr fim às drogas, pois temos assistido a apreensão de helicópteros com quilos e quilos de cocaína, assim como os casos de filhos de membros do judiciários pegos com quilos de maconha e munição – para quem nada acontece, pois seguem livres. Enquanto isso, o jovem negro detido com 10 g de maconha, por exemplo, quando tem a sorte de escapar com vida, não foge ao ultraje de ser enquadrado como traficante e acabar encaminhado ao sistema carcerário.
A justiça possui dois pesos e duas medidas. A polícia, o braço armado e executor, age de forma truculenta e genocida contra essa população pobre e preta e já sabemos que não é uma mera coincidência histórica a cor e a condição social de muitos dos que tombam.
Apesar disso, a favela é também sinônimo de afetos, de sonhos que resistiram desde sempre. Cá estamos em pé, aquilombados, prontos para continuar a cobrar dos governantes – que só sabem servir às elites brancas desse país – todos os direitos que historicamente nos furtaram. Como disse certa vez um autor desconhecido, “eles tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes”!