Favela Orgânica

Por Giovanna Barreto e Paulo Baia (co-autor)

Nos últimos cinco anos todo o território da região metropolitana do Rio de Janeiro vem passando por um acelerado processo de valorização simbólica, material e geopolítica. Ao contrário do que se possa pensar, esse movimento não é consequência dos grandes eventos dos próximos anos 2014 e 2016, cotidianamente estampados nas primeiras páginas dos jornais. Mas é, sobretudo, a sua causa.

Essa supervalorização está contida em um processo de mundialização do capital financeiro especulativo associado a uma política nacional que estimulou o crédito e o consumo para todas as faixas da população brasileira. Estamos imersos – quase náufragos – em uma sociedade de valores invertidos, onde a palavra cidadania, nascida do latim civitas – que quer dizer cidade – foi furtada de seu sentido inicial de direitos e deveres de todo e qualquer cidadão por seu novo significado: o poder de poder consumir. Para uma moradora da favela Nova Holanda, do complexo da Maré, consumir significa conquistar, “se eu compro é porque tenho dinheiro para comprar; quando a gente compra a gente se sente gente”. Dessa nova estrutura social emerge um novo tipo de dinâmica populacional que é retratada no censo demográfico de 2010 pelo IBGE como um processo migratório de natureza diferenciado. O grande Rio deixa de ser um dos principais polos de atração das populações da região norte e nordeste e passa a ser polo de atração de muitos grupos da classe média internacional e da classe média das cidades do interior do estado do Rio de Janeiro e de outros estados. O Rio de Janeiro, “cidade maravilhosa” e patrimônio Cultural da Humanidade, mas que, contraditoriamente, de fato a poucos pertence, se transformou em polo de atração para ricos e classe média abastada. Ao contrário do que se possa pensar, esse novo tipo de ocupação não se restringe a áreas hoje ocupadas pela nossa moderna nobreza social, mas se dá em todas as suas paisagens, incluindo (e principalmente) (n)as favelas. Através de uma política estrategicamente formulada que associa segurança pública, ordem pública e controle territorial, a ideia das favelas como um lugar de perigo é substituída por territórios pacificados militarmente, onde surge a lógica da pacificação militar, que exerce um controle social direto sobre o morador tradicional da favela que passa a viver vários tipos de pressões.

Neste artigo vamos detalhar apenas dois tipos. Em primeiro lugar, os moradores são estimulados ao consumo através do crédito facilitado, ao mesmo tempo em que recebem algum tipo de renda através de ações afirmativas do governo (como, por exemplo, o programa Bolsa Família). Essa renda, sem julgar aqui o seu valor ou mérito como programa de inclusão social, significa a possibilidade de consumo. Em segundo lugar, uma pressão mais violenta e mais cruel, já que também no não-lugar das suas moradias, o custo de vida tem um aumento muito superior à suas capacidades de geração de renda. Nos espaços pacificados militarmente ou mesmo nas favelas não pacificadas, mas sob o controle militar das milícias ou de facções criminosas, o custo de eletricidade, de comida, de bens e serviços aumentou muito. Este aumento faz com que o morador amplie a sua capacidade de endividamento, chegando a um ponto em que se torna prisioneiro das cadeias de credores formais (bancos, financeiras) ou informais (vendedores de porta, agiota, amigos). Paradoxalmente, esses moradores tradicionais da favela têm um bem que se valorizou muito, que é a sua própria casa. Mesmo em condições muito precárias, há um valor imobiliário real agregado associado ao valor da especulação imobiliária que existe, em larga escala, também nas favelas. O que temos observado é que a chamada nova classe média surge nas favelas e fora das favelas e faz um processo de migração de uma favela para outra, comprando casas de pessoas muito endividadas que vendem os seus barracos por valores entre 15 e40 mil reais, dependendo da localidade, e vão se localizar nos não-lugares da periferia das periferias. A este processo os urbanistas e os cientistas sociais e demógrafos que opõe resistência ao modelo chamam de expulsão branca. Os movimentos sociais nas favelas, contrários a este movimento, usam a denominação remoção branca, enquanto que os dirigentes políticos, as elites empresariais e os seus tecnocratas preferem a expressão “renovação populacional”. O fato é que estamos assistindo a um processo de “limpeza”, “higienização” das favelas dos favelados que estão sendo substituídos por moradores das novas classes médias e das velhas classes médias. Quando falamos em classe média, não ficamos prisioneiros do simplismo dos economistas, que somente avaliam os padrões de consumo. Remetemos as novas e as velhas classes médias à aquisição não apenas da capacidade de consumo, mas, sobretudo, à aquisição de novos valores societais vinculados à ascensão social, ao consumo e ao prestígio. Como exemplo, citamos dois professores doutores, titulares da UFRJ, com propriedades no bairro de Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro, que compraram e reformaram casas na favela do Vidigal, e lá estão morando. Isso representa para eles uma diminuição muito grande dos seus custos sociais e financeiros, ao mesmo tempo em que moram em uma região pacificada militarmente, o que para eles não afeta suas subjetividades. Além da diminuição de custos, tiveram oportunidade de alugar os seus apartamentos SUPERvalorizados em Ipanema por valores superiores a 5 mil reais, para famílias de executivos estrangeiros que estão trabalhando na cidade do Rio de Janeiro. Longe de pensar que dois doutores morando no Vidigal possam contribuir para o aumento da consciência cívica e educação dos antigos moradores favelados do morro, esses dois novos integrantes representam a um só tempo um símbolo e um sinal da remoção branca e da “limpeza” populacional silenciosa promovida pela dinâmica do mercado capitalista.

Hoje os governos não falam mais em remoção de favelas, a não ser pontualmente em regiões da Zona Oeste em função de obras de infraestrutura. Mas há um estímulo do mercado para que as novas e as velhas classes médias ocupem as favelas como consumidores e como moradores, o que já começamos a enxergar em quase todas as favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, da Tijuca e do Complexo do Alemão. A dinâmica é a dinâmica capitalista de valorizar a propriedade e a liberdade de compra. Você não é forcado a sair pelo governo, mas é, e de novo paradoxalmente, expulso pela liberdade do mercado. Ainda que ser expulso pela liberdade pareça contraditório, essa é a atual liberdade que conquistamos: sem piedade, sem compaixão, sem cidadania. A liberdade de ser expulso.

Mas, ao contrário do que se possa pensar, não somos de todo pessimistas. Os valores de mercado, “livres por natureza”, também foram introjetados nas subjetividades dos antigos favelados, que mesmo sem clareza, mas com maior consciência, tornam-se empreendedores de si mesmo. A expressão “vou me virar” para ter algum ganho na vida passa a ter outro significado de natureza sociológica quando é agregado à ideia de empreendedorismo. Este, por sua vez, é facilitado por várias atividades hoje presentes nestes territórios, através de agências empresariais como SESI, SENAI,

Favela Orgânica
Favela Orgânica

SENAC e SEBRAE ou órgãos governamentais específicos de capacitação para o empreendedorismo e de geração de crédito. Os movimentos sociais deixam de ter um caráter de reivindicação por direitos de cidadania e passam a ter como eixo demandar serviços de capacitação para empreender e assim tornarem-se geradores de sua própria renda e consumidores dentro do mercado global do grande Rio, associados a valores típicos de uma classe média sofisticada. Podemos citar como exemplo o projeto Favela Orgânica, em que centenas de favelados são capacitados a reciclar o seu lixo alimentar para melhorar a qualidade de vida e gerar novas possibilidades de negócio. A isso também está atrelada a ideia de sustentabilidade, que não exclui a desigualdade social e sua hierarquização perversa, mas introduz de maneira muito consistente o espírito do capitalismo de acumular capital e gerar renda e lucros para quem participa dele, ainda que de maneira sustentável. Esses são os novos valores civilizatórios emergentes nas favelas do Rio de Janeiro, embasados por um discurso quase único de todas as mídias, exceção feita às mídias alternativas em que os favelados falam por si mesmo.

Na maioria das favelas pacificadas vemos o surgimento de hospedarias, casas de show e restaurantes num circuito que cada vez mais atrai o público rico brasileiro e estrangeiro, em busca da diversão de boa qualidade. Em nota do jornal O Globo, do dia 24 de Abril de 2013, podemos ler: “(…) engenheira e moradora de Copacabana, vai comemorar sua festa de 40 anos no alto do Pavão/Pavãozinho. ‘Eu queria um lugar diferente e que desse para fazer uma roda de samba’, diz ela, que procurou vários lugares na Zona Sul, até achar, pela internet a laje de Dona Azelina. ‘Quando vi aquela vista não tive mais dúvida’, disse Gabriela, que vai levar 60 amigos na feijoada”, por Joaquim Ferreira dos Santos.

Nunca a expressão de Lícia do Prado Valladares “passa-se uma casa” esteve tão presente como hoje, entretanto de forma muito diferente da de quando Lícia escreveu sua tese de doutorado. E ao contrário do que se possa pensar, o custo de vida aumentou não apenas no bairros que compõe os mais lindos cartões postais da cidade do Rio de Janeiro. A expulsão branca é a maior expressão do novo não-lugar para onde “caminham” os tradicionais e “invisíveis” moradores das favelas.

 

*Os autores são militantes sociais, Sociólogos e professores.