O Natal que passou foi um marco, um divisor de águas para muitas famílias acostumadas à convivência eventual o ano inteiro e que têm nesta época o ponto máximo, conforme ditam as regras do consumismo cristão. Bodas e velórios também são momentos de encontro de parentes que não se veem há muito, mas diferenças, idiossincrasias, particularidades de cada um não são postas em xeque. É possível disfarçar, evitar primo chato, tio idiota, cunhada metida a besta, não precisa cumprimentar nem dar beijinho protocolar, basta acenar de longe e dar um meio sorriso que já está de bom tamanho.
Natal não. Até na troca de presentes paira sobre todos o tal “espírito natalino”, a evocação do menino Jesus e a aura do cristianismo; por isto o congraçamento do Natal se reveste de um significado especial. Por isto, também, é comum aflorarem as divergências e intolerâncias, sobretudo à medida que os brindes se sucedem em incontida provocação de parte a parte. Às vezes o ambiente, ao final da festa, se parece com um ringue ou um imenso tatame aberto às ofensas, farpas e, em casos extremos, ao desforço físico. O mais comum é convivas saírem batendo pés, rangendo dentes e falando mal uns dos outros. Faz parte da festa.
Até porque a festa é fake, para usar o termo do momento. Estudiosos garantem que Jesus deve ter nascido lá pra abril, baseados nos corpos celestes e na estrela seguida pelos magos Belchior, Gaspar e Baltazar, que não eram magos no significado que damos ao termo, mas entendidos em astrologia. Seguiram a estrela-guia por nove meses até o destino, quando ela estava na constelação de Áries, primeiro signo do zodíaco.
Mil e uma interpretações e ilações insinuam o carneiro desenhado pela constelação simbolizando o “cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”. Os magos são citados no evangelho de Mateus, sem nomes nem sequer quantos eram, falam em três com base nos presentes: ouro, mirra e incenso. Dizem também que toda a história deles é pura ficção, mas em Colônia, na Alemanha, existe um lugar onde estariam sepultados.
Falsa ou verdadeira, a festa já não tem muito a ver com o nascimento do Cristo; presépio parece coisa do passado, o Natal é cada ano mais um esquenta em família pro Réveillon, o ritual de exorcismo das agruras do ano que termina e a renovação das esperanças para o amanhã. São usuais listas de desejos, promessas e votos de amizade e amor.
Do Natal restam listas de presentes aos parentes, amigos declarados e até ocultos ou secretos. E a infalível reunião em torno da mesa na qual servem-se boas lembranças ao lado de mágoas, ressentimentos e agradecimentos em porções desiguais. Dificilmente quem participou da ceia está na champanhota do Ano Novo. Dizem que ainda há crianças que escrevem para o Papai Noel.
O final de 2019 marca também o primeiro aniversário do governo eleito com promessas que mais soavam como ameaças, mas que foram endossadas pelo fantástico gado humano do nosso eleitorado, como já tinha acontecido em nível estadual e municipal em várias partes do país.
Curioso é que se elegeram de mãos dadas entre sorrisos e juras de aliança eterna e já se esbofeteiam em público na maior falta de compostura. É o estilo do poder que se instalou à prova de bala, de empatia, de amor ao próximo. O poder eleito em nome do deus mercado, do deus dinheiro, do ódio e da ganância.
Esperavam o que no seio da família brasileira tradicional, na festa maior da cristandade, na grande confraternização anual? Abraços afetuosos e sorrisos sinceros, ou porradas e xingamentos? Uma rápida verificação nas redes sociais na semana anterior denunciava o clima áspero:
“Não vou, senão vai dar confusão!”
“Do jeito que meu avô tá chato…”
“Prefiro passar o Natal no culto pra não ter que abraçar nenhum esquerdopata da minha família!”
“Vou pro retiro no clube de tiro encher de bala os bonecos e não quero nem ouvir falar de família!”
“Meu pai tá um porre só! Bebe três e chama todo mundo pra briga, um saco!”
“Meu cunhado até hoje cumprimenta a gente fazendo arminha com a mão”.
Mesmo assim, tem pessoas, abnegadas e cheias de compaixão, que aceitam o espírito natalino até participam ativamente da ceia na casa do pai coxão duro. Gente que ameaçou ir com uma camiseta vermelha com os dizeres “Lula tá livre, babaca!”, mas abriu mão em nome da harmonia que ainda é possível respirar naquela casa.
E numa amostra de boa vontade e do mais elevado espírito cristão que devia imperar na mesa, telefonou antes e se comprometeu a levar pelo menos a sobremesa: “torta de climão”.
Foi torta pra todo lado. Sucesso absoluto!
Feliz Ano Novo!