É domingo. Tomo um café enquanto penso: dormi só três horas durante à noite. No lugar do sono, penso como vou pagar as contas; mentalmente faço cálculos, muitos, todos sempre negativos. Pouco dinheiro pra tanta coisa. Meu dente dói em contato com o café. Lembro que não consigo nunca ir ao dentista. Era tão caro, e depois de muito esforço conseguindo pagar de pouquinho em pouquinho, nunca consigo ir na consulta. Tem que trabalhar, tem que estudar, tem doces pra fazer, filho pra buscar na escola.
Ele acorda pedindo café também. Tento fazer um pão pensando: o que tem para amanhã pro lanche da escola? Acabou o do mês; preciso planejar o que dar de comer. Provavelmente, biscoito com água. O uniforme já está lavado? Tem que lavar. Deixei o dever de casa de sexta na mochila. Ele tem que fazer o dever.
Sinto dores na barriga; faz tempo, mas não consigo fazer o exame. Não tem tempo. Tem que encaixar no horário da saída e da entrada.
Ele me pede um brinquedo que vê na TV. “Quando você tiver muito dinheiro você compra, mamãe?”. Respondo que sim, meio atarantada. Ele sabe que não vou dar. Porque não tem muito dinheiro. Eu sei que não vou comprar. Porque nem com o pouco eu posso. Ficamos nesse pacto do “eu sei que você sabe”, um pacto que só nós dois sabemos que existe, e ele fica satisfeito.
Lembrei do dever. Hora de fazer. Faço o movimento da letra “a” pensando em quando vai dar pra pagar o aluguel. Já venceu, estão cobrando. Como vou fazer?
Tem prova na faculdade! Como não pensei nisso? Tem que separar o dinheiro para comprar o lanche. Semana passada ele foi embora chorando porque não tinha um lanche bom. Quis chorar junto com ele. Engoli. “É o que tem e diz amém”. Queria ter mais. A prova!!!
Tento me embrenhar nos cadernos procurando a data da prova. É pra quando? Preciso me organizar.
Tem doce pra enrolar na geladeira. É o dinheiro da conta de luz.
Enquanto isso, meu filho me chama. Não escuto.
“Mãe, feliz dia das mães”
Quê?
“Feliz dia das mães”.
Meu Deus, é dia das mães. O que eu queria fazer nesse dia? Não sei. Levar ele pra ver um filme legal. Almoçar besteira.
“Mãe, você me dá quando você receber?”
Quê? Dou.
Aluguel. Luz. Tem que comprar o gás do mês. Voltou a dor de dente. E a dor na barriga. Dipirona resolve. Lanche do mês. Já fui comprar? Prova. Dever de casa. Nem vi se ele fez direito. Abro de novo. Não fez. Senta aqui, o que é isso aqui? Faltou capricho. Faz de novo.
Ele chora. Uma pirraça qualquer. Deixo de castigo. Choro no ouvido. Meu Deus, eu enrolei o doce?
Tento me concentrar na prova. No doce. O choro irrita. Alguém grita de longe “Você mima demais. É mole demais. Tem que ser mais dura”.
Tem que ser mais dura.
Tem que fazer o lanche.
Tem que fazer o dever.
Tem que educar direito.
Não pode gritar. Não pode falar “não pode”. Tem que entender o choro.
Não entendo!
Abro o Whatsapp. “Feliz dia das mães, mãe é só amor”. Não sou só amor. Sou aluguel vencido, luz pra pagar, gás a 80 reais. Sou o lanche da escola e a prova mal estudada. Sou o doce pra vender na geladeira. E o brinquedo que não deu pra comprar. E o cinema que não deu pra levar. E o doce que não deu pra dar. Sou a dor de dente e a dor de barriga que não encontram o tempo nem o dinheiro de ir ao médico e ao dentista (caríssimo, caríssimo).
Também sou o choro. Não o da pirraça dele. O engolido. Porque eu entendo o choro dele. É de criança que não sabe expressar sentimento. Não entendo o meu. É de cansaço, falta de ânimo, dor. É de culpa. Quem mimou fui eu. É de medo. Meu filho preto e pobre vai pra escola e pode não voltar. Porque foi confundido. Porque tava na hora.
Sou a janta comida na pressa. Sou o arroz, feijão e ovo, porque não tem carne. Não tem legume. Não tem iogurte. Não tem geladeira cheia. Não sou o Danone. Sou a falta dele.
Feliz dia das mães. Sou só amor, mas sou feliz? Não sei. Não sei se dá. Não sei se consigo. Não sei se dá tempo.
Feliz dia das mães. Será que o mercado abre pra eu comprar o lanche?