Nós já fomos jogados nas florestas para sermos devorados por feras famintas e pela imperdoável fome; depois lançados nas câmaras de gás para morrermos dolorosa e lentamente; e continuamos sendo, agora, arremessados para fora de um lugar chamado escola! Sim, continuamos sendo lançados para fora, em muitas situações, especificamente, de escolas municipais de Salvador, segundo muitos relatos de mães, inclusive, na mídia soteropolitana!
Quem somos nós neste caso? Se você adivinhar de quem estou falando, eu te dou um doce, como o Chorão (1970-2013) do Charlie Brown Jr. prometeu. Sim, estou me referindo às pessoas com deficiência. Pessoas que, ao longo da história humana, foram deixadas para morrer nas florestas (por mais que essa atitude tenha um componente cultural e de sobrevivência, porém é totalmente discutível). Há menos de cem anos, milhares de pessoas com algum tipo de deficiência foram levadas para câmaras de gás para terem uma morte horrorosa: asfixiadas por horas. Isso porque o estado alemão (nazista) não queria ter “despesas” com essas pessoas, tidas como inferiores. E em Salvador, há tempos, mães e pais vêm denunciando que seus filhos estão sendo “expulsos” ou proibidos de ir à escola.
Alguém pode questionar: “Mas essa comparação não é exagerada e injusta?” Eu digo, com certeza, que não, pois a sociedade, durante séculos, passou por profundas e visíveis transformações, inclusive, nas formas de violência, opressão e exclusão. A escola é um lugar essencial, fundamental e decisivo para a formação e maturação da nossa personalidade, do desenvolvimento dos nossos processos cognitivos, psicológicos, emocionais e sociais, advindos da convivência e troca com o outro, com o diferente. Todos nós nascemos apenas como seres biológicos, e nos tornamos seres humanos, a partir do outro, do seu olhar, da vivência, da convivência e da aprendizagem com a alteridade. Então, quando se tiram crianças e adolescente das escolas, também estão tirando uma parte relevante e grande de sua humanidade. Se não são de todo humanas, logo não precisam de direitos, como políticas públicas ou contribuições da sociedade civil para se inseri-las na vida societária. Cabendo a elas, uma subvida, na sombra, e nestas circunstâncias, provocando nas demais pessoas, pena e caridade exageradas e oportunistas, pontuais e temporárias, o que, também, é uma das facetas do capacitismo, ou seja, transforma elas em seres vegetais, causando-lhes uma morte simbólica, social, uma inexistência artificial! Uma morte igualmente cruel, dolorosa e lenta como as outras, porque ela acontece todos os dias, enquanto vivemos. Estão vendo, como podemos compará-la com as anteriores?
Acredito que ainda não está muito claro o que eu estou discorrendo neste artigo. Já me referi à exclusão, às escolas de Salvador, às crianças e aos adolescentes. O que, de fato, está acontecendo? Há muitas denúncias e até processos coletivos contra a Secretaria de Educação de Salvador/BA por falta de ADI (Auxiliar de Desenvolvimento Infantil) nas escolas. ADI é o profissional da educação que auxilia os estudantes com alguma deficiência a realizarem suas atividades pedagógicas, lúdicas, físicas e na socialização, além de ajudar a ir ao banheiro e na hora deste educando merendar.
Mesmo sendo uma pessoa com deficiência e militante da causa, estou sempre ocupado com a luta do ordinário, do corriqueiro e do mais simples dos básicos: provar diariamente a minha humanidade, o meu valor e até conversar com uma pessoa, uma mãe dedicada e preocupada com seu filho com uma deficiência que ficava/fica dias sem ir à escola por falta de ADI’s. Obviamente, que já tinha ouvido isso de tal profissional, porém, era sempre em situações de bastante discussão por diversas demandas nos movimentos sociais, por muitas vezes, brigar pelo mais simples e básico, como já disse. Mas, escutando mais de perto sobre o ADI e a sua função, simplesmente, eu tive um gatilho, um grande gatilho! Logo adiante, relatarei detalhadamente sobre ele.
Então, movido e munido de curiosidade, resolvi pesquisar um pouco a respeito e sobre a situação da capital do estado em relação a este profissional. E fiquei abismado, angustiado e entristecido com o que li em matérias na internet (claro que em sites de credibilidade, como o G1 e o da Defensoria Pública da Bahia). Nestes e em outros (também confiáveis) vi diversos absurdos do tipo: apenas dois ADI’s para atender 13 estudantes. No entanto, o absurdo não parou por aí. Em uma escola no bairro Jardim das Margaridas, em Salvador, havia 56 alunos com deficiência para serem auxiliados por cinco profissionais. Posso ser de Humanas, mas é Matemática Básica, nos dois casos citados, além do excedente inumano de trabalho, a conta de divisão, no primeiro caso vai dar seis alunos para cada educador, sobrando um, no segundo, são 11, 2 educandos para cada ADI, ou seja, nas duas situações as educadoras terão que tomar uma decisão salomônica e cortar um estudante ao meio. Só no ano passado, de acordo com o G1, 19 famílias entraram com processos coletivos contra o município. Porém 16, desses casos tiveram uma resolução. Ainda restam três casos não resolvidos. Contudo, além desses três, há inúmeros adolescentes e crianças privados de seu direito constitucional à educação em muitas escolas municipais. Eu soube do caso de dois estudantes que estavam sem frequentar as aulas na escola que dedico uma admiração e carinho especiais, pois foi onde estudei. Mas, compreendo que não é um problema da gestão escolar e, sim, do Poder Público na esfera municipal, que deveria garantir a esses estudantes o direito que lhes é assegurado pela nossa Carta Magna e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Investir milhões de reais para atrair turistas é importante e fundamental para a economia da capital, mas deixar de cuidar e assistir os seus, que também geram riquezas para a cidade, é cruel e burro. É lógico que uma educação inclusiva vai formar sujeitos mais tolerantes, criativos, inteligentes e com senso de justiça apurado. Todavia o que nós temos é uma educação excludente e que tem provocado uma espécie de abandono escolar em massa nos alunos e alunas com deficiência.
Eis aqui o fruto do meu gatilho ao pesquisar acerca do assunto: Eu nunca deixei de frequentar a escola por falta de ADI (naquela época não se falava disso, pelo menos ao grande público), contudo, compreendi de uma forma nitidamente assustadora e vergonhosa, o quanto sofri e fui privado de ter um processo pedagógico, social, emocional, cognitivo, formativo e físico escolar/educacional mais proveitoso, feliz, integral, benéfico e indolor pela ausência deste profissional no ambiente das escolas onde estudei. Com isso, fui impelido a escrever alguma coisa a respeito.
Com a minha coordenação motora um tanto quanto comprometida devido à paralisia cerebral, eu ficava com vergonha e medo de merendar sozinho, de sujar-me e ser motivo de zombaria e de nojo por parte dos colegas da turma e de outros. Ao preparar-me para escrever o presente artigo, lembrei de que essa experiência triste e dolorosa se intensificou com pujança e tornou-se ainda mais terrível no Ensino Fundamental II (antiga 5ª a 8ª série) mesmo tendo sido um período, onde conheci pessoas marcantes e vivi coisas muito bonitas com elas, que foram determinantes positivamente para minha história, entretanto, foi nessa época, no apogeu da minha adolescência, do meu desenvolvimento biológico, que eu tive de ir à escola, muitas vezes, sem tomar o café da manhã. Nessas ocasiões, o máximo que ingeria era um gole de café preto. Nos primeiros horários, dava para enganar a senhora implacável fome, mas quando chegava o recreio e toda a escola era perfumada, gostosa e soberbamente, pelo aroma cruel do feijão tropeiro, do macarrão com salsicha, cuscuz com sardinha e do cachorro quente, surgia uma mistura de fome, raiva e vergonha em mim! Um adolescente faminto não poder comer um hot dog deveria ser um crime! E, na verdade, é um crime sim. A merenda escolar, garantida por lei, era negada a mim. Meus amigos, colegas e professores não sabiam o que fazer ou ficavam com vergonha de me perguntar se eu queria ajuda para merendar. Ninguém estava preparado para tal situação. Mas, minha fome e meu sofrimento eram alheios a isso.
E quando o último horário de aula era a temível Matemática, apresentando a longa e confusa fórmula de Bhaskara, a minha cabeça girava e ia para algum lugar desconhecido fora do espaço-tempo. Apenas o meu estômago ficava grunhindo: “x uma linha é o caralho! Bora, pró, adianta!” A pró de Matemática, Denise, era uma queridíssima! Só era fome mesmo. E o problema maior nem era o comer, mas, o “descomer” e o “desbeber” como falava Ariano Suassuna (1927-2014). O “descomer” é o reverso de comer e o “desbeber”, é o do de beber. Geralmente, como comia pouco ou nada antes de ir à escola, não tinha muita vontade ir ao banheiro, e quando tinha, ela sucumbia a mim. Mas, um belo dia, tal vontade mostrou-me todo o seu poderio. Havia uma bomba dentro de mim. Tentei dominá-la, desarmá-la e ignorá-la, eu mandava sempre que isso acontecia. Não daquela vez. Parecia ser inevitável. Apelei para orações, canções religiosas e a bomba me respondia lacônica: “Estou cagando…” literalmente. Até que o vigia teve que me levar generosamente para o banheiro. E a minha maravilhosa pró Cris nas agonias, se acidentou. Tiveram que ligar para a minha casa e minha irmã Lívia correu para a escola, para terminar o “serviço” comigo.
No Ensino Médio, eu cheguei a “desbeber” nas calças, a minha sorte é que não tinha mais ninguém na sala e quem me levava para a casa era um grande amigo, ele foi compreensível e respeitoso com a situação.
Como já disse acima, eu não deixei de frequentar a sala de aula, talvez, por falta de opção e por enxergar na escola uma válvula de escape à minha realidade familiar dolorida e, não, por não precisar de um ADI. Mas, vale muito bem ressaltar que não se deve apenas contratar pessoas quaisquer para preencher meras vagas de emprego. A Secretaria de Educação de Salvador deve buscar profissionais com qualificação e investir nestes, para que tenham uma formação continuada e, obviamente, um bom salário para que haja um compromisso e um bem-estar nesses educadores.
Apesar de possuir numerosas lembranças boas, risonhas e bonitas do meu tempo de escola, tenho certeza que a minha experiência escolar teria sido mais rica, amena e frutífera se tivesse uma ou um ADI para me dar suporte. Mas, sem eles, dezenas de crianças e adolescentes estão sendo jogados fora das escolas e proibidos de desenvolver suas habilidades, talentos e potências. Crianças e adolescentes fora da escola, tal sentença por si, só em escrevê-la, já deveria ser um crime gravíssimo. E praticá-lo, um crime hediondo, uma blasfêmia! Uma sociedade que concebe, permite e pratica isso, já deu muito errado.
Por anos a fio, eu acreditei que o descaso do Estado e da sociedade civil, quase como um todo, para com as pessoas com deficiência fosse porque nós não estávamos inseridos na lógica de produção capitalista. Em outras palavras, que não produzíamos. Na verdade, produzimos sim. Nós produzimos afetos, momentos, sentimentos e bens materiais como todo mundo, só que de maneira e/ou em graus diversos e diferentes. O problema é que nós não podemos ser explorados legal e fisicamente (muitas vezes) como as demais pessoas.
Enfim, o capitalismo combina, terrivelmente bem, com o capacitismo.