Mesmo sem endereço, trabalho ou qualquer bem, moradores de rua cariocas são multados pela Guarda Civil Municipal por não estarem com máscaras. Um deles comia na quentinha o almoço quando foi abordado. Mostrou a máscara apoiada na perna, tirada apenas para comer, mas os guardas não se comoveram. Ele apontou, então, a esquina próxima, onde guardas como ele conversavam animadamente…sem máscaras. A insensibilidade virou animosidade e o homem recebeu o Termo de Constatação de Infração Sanitária contendo nome e CPF e o endereço: calçada da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 552, no bairro onde se espraia a “princesinha do mar”.
“Essa ação de multar morador de rua é uma prática higienista. Há uma pressão por parte da associação de moradores de Copacabana para retirar essa população de rua de lá”, diz em tom recriminatório a defensora pública Carla Beatriz. A Defensoria Pública também cobrou explicações na última terça-feira, 14: “O princípio da razoabilidade foi infringido e desrespeitado, posto que uma sanção de multa aplicada contra aquele que sequer tem acesso aos itens mais básicos da vida, como a alimentação e a moradia adequada, e que depende, muitas das vezes, da solidariedade de projetos voluntários, não se mostra adequada a atingir os fins almejados quando se direciona a esse grupo já tão estigmatizado”, afirma a nota encaminhada à prefeitura.
A reação do poder público foi a usual: eximir-se de responsabilidade e culpar o cidadão, protocolo típico das polícias, copiado e seguido pela GM: “No momento da abordagem e da notificação, o cidadão não se apresentou como pessoa em situação de rua, nem tampouco a equipe agiu demonstrando qualquer distinção, juízo de valor ou preconceito.” O cidadão não apenas explicitou sua condição, como o fato de almoçar sentado na calçada indicava que não tinha outra opção. Na realidade, a Guarda Municipal só quis exercer seu poder menor sobre pessoa vulnerável e indefesa.
A Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, por sua vez, burocratizou a resposta à Defensoria Pública com informações não solicitadas e inoportunas: disse que realiza a distribuição de máscaras e kits de higiene para a população em situação de rua durante as abordagens feitas diariamente. “Entre 10 de março e 15 de julho, foram distribuídos máscaras e 11 mil kits de higiene”, segundo a Secretaria, que informou ainda ter adquirido 1,8 milhão de máscaras para distribuição, por meio de licitação.
O presidente da Sociedade Amigos de Copacabana, Horácio Magalhães, vê o bairro como propriedade da associação que dirige e os moradores de rua como estorvo que tem de ser eliminado. Aponta um projeto de associações de moradores do bairro de negar esmolas à população de rua. Em vez disso, seria estimulada a ajuda a abrigos públicos do município. “Não se trata de uma ação de higienização, mas sim de dar dignidade a essas pessoas que estão na rua. É um projeto consistente e propositivo de ajudar essa população de maneira mais adequada,” entende Horácio.
A prefeitura, que representa o Olimpo nesta questão delicada, já entrou com uma ação na Justiça para obter a permissão para acolher, de forma compulsória, moradores de rua. O objetivo é diminuir a infecção desta população por Covid-19. Cabe à justiça decidir se é legal ou não tirar pessoas da rua à força e cobrar de quem não nem casa o uso de máscara protetora. A liminar sobre a internação compulsória chegou na mesma quarta-feira, 15, ao juiz João Luiz Ferraz de Oliveira Lima, da 10ª Vara da Fazenda Pública. Ele deu o prazo de dez dias úteis para que o Ministério Público do Estado se manifeste, depois do que ele decidirá se acata ou não a liminar. Até lá, a rua é da sociedade de moradores, da prefeitura e dos guardas municipais; quem dorme e vive nela não pode senão se encolher sob as marquises para escapar do frio, da chuva e do coronavírus.
Nota da SEOP
O Secretário de Ordem Pública do município, Gutemberg Fonseca, enviou os esclarecimentos por escrito, acrescentando em mensagem de MP4 que o cidadão abordado não tinha aparência de “morador em situação de rua”, o que ajuda a compreender que a gravidade da crise econômica e social derruba estereótipos como “mendigo” e outros da sociedade carioca e brasileira.
Com a nota divulgada aqui o Secretário demonstra a necessidade de instruir a guarda sob seu comando sobre as transformações sociais, para que não transpareça em sua ação o preconceito que carrega na vida particular. Eis a nota:
“A multa foi retirada assim que cidadão se apresentou como pessoa em situação de rua.
Vale ressaltar que esse foi um caso isolado e que a Guarda Municipal atua diariamente em apoio às ações de acolhimento de pessoas em situação de rua.
A Prefeitura do Rio, desde o início da pandemia, deixou claro, inclusive, que preferia não multar as pessoas, mas conscientizar para que todos se protejam e assim protejam aos demais.
A Assistência Social distribui máscaras aos moradores de rua.”