Era a primeira semana do mês, antes do dia 5, ou seja, mais um dia sem dinheiro, mais um dia longo, de uma semana longa, em um ano atípico. Trabalhador nenhum estava feliz. Era 19 horas de uma terça-feira pós-feriado, mas feriado antes do quinto dia útil não significa nada. Aliás, para grande maioria da população, qualquer dia que não seja o quinto dia útil é fim de mês.
Saíamos do trabalho, no centro de Curitiba, para o único hipermercado que ficava aberto até às 21 horas. Fomos comprar o básico: café, papel higiênico e pão. Meu colega tinha a mesma lista de compras, acrescida com ração para os gatos. Para nós ainda era fim de mês, não vivíamos, apenas sobrevivíamos.
Antes de chegar no mercado a bateria do celular acabou, com um monte de coisas para resolver. O proletariado resolve coisa pra caramba! É tio com Covid-19 na UPA, treta no condomínio, cobrar aquele amigo que está devendo, mas posta foto na balada, aula on-line… O celular não para de tocar o dia todo. Dentro do mercado, esquecíamos que estávamos no centro de Curitiba com ruas bonitas, cafés internacionais, barbearias chiques, hambúrguer e cerveja artesanal.
Às 20 horas, na sessão de marcas desconhecidas e promoções de leve cinco pague três, era a Curitiba que não aparece na televisão. Era a dona de casa do Tatuquara suja de barro e com um mau humor, já pensando nas duas horas que vai enfrentar no ônibus. Era o tiozinho lá do Sítio Cercado que vai voltar para casa só com macarrão para a família. Eram os moleques de Colombo que trabalharam o dia todo. Ali era território dos suburbanos, com um ou outro morador do centro e bairros nobres, fazendo compras.
Um casal desses exóticos moradores do centro, estava na minha frente com um carrinho cheio, na fila seis do caixa rápido. Nessas filas passam apenas 20 volumes, mas eles estavam com um carrinho grande cheio e uma cestinha. Só compras gourmets, sorvetes importados, cervejas de garrafinhas bonitas, alimentos defumados e produtos de higiene com nomes que nem conseguimos pronunciar. Os dois estavam com Iphones, fones nos pescoços e casacos elegantes. O principal erro do casal não foi não seguir as regras do caixa rápido, mas sim não ter olhado quem estava na fila seis.
Tinham apenas sete pessoas, todas com menos de cinco itens, cara de cansadas, duas até com crianças no colo, um com uniforme da firma. A fila seis não estava para sacanagem. O moço começou a colocar as compras no caixa, o pessoal começou a falar: “o máximo são 20 volumes”, “aqui é o caixa rápido”. A menina percebeu o clima, tentou impedir o companheiro: “amor, aqui não vai dar para passar”, no que ele respondeu: “passa sim, já estamos aqui, eu não vou pegar outra fila”. Ali eles selaram seus destinos e ativaram todo o último resquício de energia dos compradores da fila seis.
Ainda com poucos produtos na esteira, a caixa tentou avisar: “senhor, é permitido 20 volumes”. Ele riu, olhou para trás e ignorou as reclamações dos outros compradores. Um rapaz alto, com blusa de telemarketing e apenas um dois Miojos na mão, começou a contar os itens em voz alta. Os outros começaram a entoar junto, já era clima de torcida organizada. Chegou aos 20 itens. O homem tentou empurrar mais um suco importado e um pão integral com granola. A caixa se dirigiu a moça. “Senhora, já passaram os 20 volumes, seu marido pode passar o resto em uma segunda compra”. A caixa tentava evitar o pior, no fundo, ela também torcia pela fila seis. Mas o moço não conhecia o que era o ódio dos dias anteriores ao dia 5 e exclamou: “quero o meu café da manhã e vou passar. Eu tô pagando, chama o gerente”.
A última frase dita pelo homem ecoou na mente de todos daquela fila, naquela altura a fila cinco e sete também estavam atentas. As filas cinco e sete também sofriam à espera do quinto dia útil. A caixa olhou para os compradores da sua própria fila, e observou que na fila sete uma mulher também protestava, enquanto amamentava seu filho. “Por isso o Brasil não vai pra frente, tem gente que pensa que é superior às leis”. A caixa se sentia uma juíza de Atletiba* decidindo sobre a falta que, claramente, marcava pênalti.
A moça atrás de mim também gritou. “Ei colega, não deixa ele falar assim com você não! Você é trabalhadora não escrava”. Os outros assentiam com as cabeças. A caixa passou um rádio para o gerente. Ficou um silêncio de intervalo do último episódio da novela, algumas pessoas filmavam e colocavam nas redes sociais. Estávamos todos ansiosos, não dava para saber se a gerência era nossa ou da falsa burguesia.
Enquanto a gerência não chegava, o moço ainda causava: “então se não vai passar, eu vou levar de graça”. Em contrapartida a classe trabalhadora estava se unindo cada vez mais. “Mais vantagens vocês não vão ter. Estão atrasando todo mundo, seus mimados”. Outra dava força a caixa: “moça, não deixa isso acontecer, quem tem poder é você”. O brio dos compradores estava em jogo. A fila já estava chegando ao fim do corredor, todos já esticavam as cabeças para tentar avaliar como seria a ação. Uma mulher negra, olhar de cansada, tênis sem marca, tinha tudo para o gol ser nosso. Mas não dava para saber, nem todos se reconhecem pertencentes à classe explorada. Porém o cenário era bom, a caixa já estava empoderada, os clientes unidos e o casal visivelmente constrangido. A gerente chegou a fila seis. Suspirou, olhou com um olhar indecifrável para filas e soltou:
“Márcia, pode cancelar a compra desse casal, que eles vão comprar em outro lugar”. A fila seis explodiu! Rolaram aplausos, abraços, a senhora da fila sete até deixou a criança pegar um chocolate da prateleira do caixa. Vencemos! O casal saiu grunhindo, disseram que nunca mais voltavam. No rosto dos outros havia brilho nos olhos, sorrisos de canto de boca e até um cantarolar baixinho. Naquele dia, às 21h30, havia cumplicidade no olhar das pessoas com sacolas de mercado nos tubos de ônibus. Os dois dias até o dia 5 passaram mais leves, reacendeu a esperança no final de ano. Vencemos camaradas. Vencemos!
*Atletiba: confronto entre os clubes de futebol Athletico Paranaense e Coritiba.