Entrevista: Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português

Créditos: Scarlett Rocha

“Há resistência, não há desistência”

Fazia um calorão naquele  15 de novembro. Cerca de 120 militantes e representantes de organizações do Rio de Janeiro trocaram a praia do feriado por um dia de conversa: era um encontro promovido pela Universidade Popular dos Movimentos Sociais, organização criada pelo professor catedrático da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, para fomentar as trocas entre os grupos.

No dia de seu aniversário, o acaso trouxe o intelectual para celebrar seus 77 anos de vida à favela onde, em 1970, vivenciou uma história inusitada, que levou às gargalhadas os participantes do encontro: acabou ameaçado por um líder comunitário da Maré após afirmar que pretendia fazer uma “investigação” (o mesmo que “pesquisa” em Portugal) sobre os modos de organização das favelas. O contratempo acabou levando o jovem sociólogo para o Jacarezinho, lugar que lhe serviu de teto e inspiração para a tese que se tornou um marco na Sociologia do Direito e, posteriormente, para a obra “O Direito dos Oprimidos”, lançada quase cinco décadas depois.

Com pesquisas no Brasil, África, América Latina e Índia, e mais de 20 livros lançados em português, Boaventura de Sousa Santos é um dos grandes estudiosos da democracia, dos direitos humanos e da globalização, e percorre o mundo conhecendo novas realidades. Neste bate-papo com o Jornal A Voz da Favela, realizado no Museu da Maré, ele fala sobre algumas delas.

 

A Voz da Favela: O senhor possui uma longa relação com as favelas no Brasil. Como se deu isso?

Boaventura de Sousa Santos: Eu estava fazendo um trabalho nos Estados Unidos para a Universidade de Yale, e como meus avós foram ambos operários aqui no Rio de Janeiro, eu sempre quis vir. Meu avô trabalhou na empresa que criou os bondes no Rio. Ele assentava os carris. Falava muitas coisas lindas do Brasil. Portanto, quis fazer a tese de doutoramento sobre a organização de moradores. Estávamos em um período de ditadura, extremamente punitivo. Como hoje, havia muito preconceito quanto aos favelados, que eram objeto de muita intervenção policial. E havia um trabalho organizativo que me fascinava, que era a base das associações de moradores. Em tempos de violência, eram elas que organizavam a vida coletiva interna. Foi exatamente esse trabalho que eu quis resgatar. O objeto que tinha a estudar era a organização interna das favelas e o modo como, nas condições de maior exclusão social, de indignidade de condições de vida, as pessoas construíam uma vida digna. Havia a ideia de que eram todos bandidos, e eu sabia bem que não eram, e isso só se podia captar vivendo na favela. Portanto, fui viver no Jacarezinho, (comunidade) operária, que já era uma das maiores da Zona Norte.

 

AVF: O senhor morou em que área ali?

BSS: Na Getúlio Vargas. Era uma transversal. Vivi lá vários meses para construir o meu trabalho, e foi uma grande lição de vida. Fiz amigos. Todo o trabalho organizativo, àquela altura, era clandestino, à medida que eram fóruns partidários, como o Partido Comunista e os grupos do Brizola, que organizavam a vida coletiva. Eu fui muito amigo de um homem, que era um sapateiro, o (líder comunitário) Irineu Guimarães, a quem dediquei um livro meu, “O direito dos oprimidos” (2014). Fui visitá-lo muitos anos depois. Estive duas vezes na favela, já há alguns anos. Então, esse foi o meu trabalho, para tentar mostrar como nem todo o direito do brasileiro era direito oficial, que havia um direito paralelo – o das favelas, onde as pessoas abandonadas pelo Estado tinham que criar a sua própria ordem.

 

AVF: E como o senhor enxerga a situação das favelas hoje?

BSS: As favelas são a expressão da desigualdade e do caos do urbanismo em sociedades com muitas clivagens, que são de classe e de raça. Obviamente, a cor das pessoas das favelas é diferente da cor das pessoas de Copacabana. Portanto, classe e raça estão sempre unidas na sociedade brasileira. Essa exclusão continuou. Pouco mudou. Devido à repressão, a organização era realmente muito concentrada nos grupos clandestinos. Depois da democratização, os grandes partidos políticos procuraram ter controle das favelas. Entretanto, o crime organizado também e, portanto, os narcotraficantes. Esse problema não existia. Havia consumo de drogas – maconha, basicamente. Era um tempo muito diferente deste. Havia uma violência do Estado a cercar, mas, dentro da comunidade, estávamos perfeitamente seguros. Nunca me senti tão seguro quanto dentro da favela. Eu me sentia mais seguro na favela propriamente do que em Copacabana.

 

“Eu me sentia mais seguro na favela propriamente do que em Copacabana.”

 

AVF: De maneira global, como o senhor vê os movimentos sociais hoje, neste momento de escalada mundial do conservadorismo?

BSS: Os movimentos, aqui no continente latino-americano, estão numa fase defensiva, porque tiveram conquistas significativas aqui nos últimos 13 anos. A eleição do presidente Lula foi produto já dessas conquistas, de seu trabalho político. Acontece que, depois da eleição do presidente Lula, descansaram. Pensaram que a militância já não seria tão necessária porque tinham um amigo na presidência. Obviamente, o presidente Lula era um amigo das classes populares, mas estava sujeito a muitas pressões. E sem a pressão das classes populares, o poder acabou por se inclinar para questões que não deveria ter visado. É uma das causas, mas as pessoas estão tentando retornar, como estamos a ver aqui nesta jornada. Vai ser um processo lento. Provavelmente, muitos deles ainda estarão em estado de choque.

 

AVF: As periferias são diferentes entre si. Também num contexto global, se for possível comparar o cenário das favelas brasileiras com as periferias do mundo, o que nos aproxima?

BSS: Obviamente, é a exclusão, o que eu chamo de apartheid social. Uma vez que as favelas são zonas cada vez mais numerosas – isso em todo o mundo, seja no México, Mumbai, Índia –, cresce a exclusão social. São cada vez mais isoladas, no sentido de ser um autêntico apartheid, com cordões sanitários criados pela própria polícia. O comportamento da polícia é distinto nessas áreas. Há muita coisa em comum, mas todas têm sua própria maneira de ser. A presença do tráfico de drogas é variada. Na Índia, não se encontra a mesma que na América Latina. As formas realizativas também são diferentes. Mas todas elas têm a sua realização, as suas estruturas internas e, comumente, seus próprios tribunais, como aqui no Jacarezinho, onde a associação de moradores resolvia conflitos entre os vizinhos. Infelizmente, o capitalismo atual é um capitalismo de exclusão, portanto, reproduz muitas dessas situações.

 

AVF: E agora, a pergunta que todos os movimentos e ativistas têm feito: qual é a saída para este momento terrível que estamos vivendo? A vanguarda está na periferia?

BSS: Eu não gosto muito da palavra “vanguarda”, porque as vanguardas têm a consciência de que possuem o conhecimento e a linha correta, que o povo é ignorante e que tem que os seguir. Eu acredito mais na retaguarda, inclusive, do que nas vanguardas. O povo é que tem que liderar e se organizar. Eu tenho visto resistência desde que cheguei. Tenho estado com muitos grupos no Brasil. Inclusive, considero este espaço e este dia aqui no Museu da Maré uma zona de resistência, digamos assim, como outras onde estive (na Ocupação Povo Sem Medo, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST) em São Bernardo, como estive com as Mães de Maio, em São Paulo, como estive em outras organizações, na Universidade de Brasília, nos movimentos das periferias. Há muita gente a resistir, há muitos jovens, com as manifestações artísticas, o rap. Portanto, há resistência, não há desistência. Agora, ela não está muito organizada, nem em movimentos sociais fortes, muito menos em partidos. E, claro, aproxima-se um período complicado, que é 2018. Normalmente, períodos eleitores são maus para os movimentos sociais. São momentos em que os partidos ganham muita proeminência sobre eles. Eu prevejo que não vai haver um grande florescimento dos movimentos, embora tenhamos duas frentes de movimentos populares neste tempo no Brasil: o Brasil Popular e o Povo Sem Medo, que são duas frentes significativas. Uma é liderada pelo MST (Movimento dos Sem Terra), a outra pelo MTST e vão realizar a resistência. Eu, aliás, participei da Ocupação de São Bernardo, e estou impressionado. Portanto, a gente tem que ter esperança, porque o povo que está desesperado, que vive em condições indignas, está a nos dar lições de dignidade e resistência.

“Publicado na edição de dezembro de 2017 do Jornal A Voz da Favela”.