“Se alguém quer matar-me de amor, que me mate no Estácio”… Há mais de uma semana esse verso não me sai da cabeça. Vi, dias atrás, que Luiz Melodia faria 72 anos de nascimento hoje. Ele nasceu no morro do Estácio. Desde então, essa parte da maravilhosa música “Estácio, Holly Estácio” se repete na minha memória. Obcessivamente. E não tive como evitar este texto.

Não tive como evitar várias coisas, como chamar minhas filhas, uma de seis e outra de 11 anos, para ouvirmos algumas músicas. Obrigação de pai, tem que educar, né? Se deixar pra escola… Até pedi para a mais velha, Luiza, fazer a ilustração desta crônica. A mais nova, Clarice, voluntariosa, seguiu a irmã e fez o desenho dela, claro. Ambas se inspiraram em “Negro gato”. E aí foi o gatilho.

Eu não pretendia falar de nenhuma questão social, mas foi inevitável. Entre as diversas lembranças que me vinham à memória, antes de ouvir pela milésima vez “Negro gato”, está a capa do disco Pérola Negra, de 1973, montagem absolutamente genial, com Melodia sentado em uma banheira na vertical, entulhos ao lado, rodeado de feijões pretos. Ele novinho, segurando um globo terrestre. Chapa.

Eu não pretendia relembrar que “Negro gato” tem toda a doçura de Melodia, mas trata das agruras do preto, da fome e da violência. Queria falar da vez que, sei lá em qual aeroporto, ouvi alguém falando alto. Era Luiz Melodia, que chamava um amigo do outro lado do saguão, enquanto comia uma coxinha.

Fiquei rindo e não ousei interpelar o cara, o monstro, o mestre. Fiquei viajando na constatação tão terrena de que ele comia coxinha. Pensei: alguma coisa nele pode se parecer conosco, pobres mortais.

Eu não pretendia lembrar que a fome assola milhões de brasileiros, e não me venham com disputas de índices, se o dado sobre 33 milhões de famintos está defasado. Quando entenderemos que, enquanto um brasileiro, um ser humano passar fome, a vergonha é geral, um fracasso da nação e da raça humana?

“Negro gato” – ouça com atenção! – fala de uma “triste história”, de um negro que é gato no sentido da sobrevivência, das sete vidas postas à prova cotidianamente, não da beleza física cujo substantivo se torna adjetivo, “gato”.

A letra começa afirmando que a história a ser narrada, a biografia de um sobrevivente, faz chorar. Letra curta, exemplar no sentido da mensagem compactada característica da poesia, cita duas vezes a fome: “Há tempos que eu não sei o que é um bom prato” e “se não comer, acabo num buraco”. Lembra da violência, ou o que você acha que significa “um dia lá no morro, pobre de mim, queriam minha pele para tamborim”?

Tem ironia também, o que suaviza um pouco as coisas. Adoro a passagem – acho a melhor da letra – em que diz “só mesmo de um telhado, aos outros desacato”. Rima interna, muita treta, só pra quem manja, tio. A letra termina com uma fuga, o negro gato desaparecendo no mato.

É bonito demais, é relevante socialmente, é delicado e consciente. Tudo isso pra sugerir sua playlist de hoje: coloca o negro gato para cantar e tenha o melhor fim de semana deste começo de ano. Aqui em casa, está rolando. E pretendo gravar algumas no pen drive para ouvir no carro.

Sabe como é, tem que educar as filhas, pois, se deixar pra escola, elas correm o risco de não conhecer o “coração do Brasil”, conforme Melodia repete em “Magrelinha”. Ok, não vou comentar a magreza, este texto pretende ser comemorativo, alto astral. É para lembrar que este país injusto, cruel, produz artistas como Luiz Melodia.

Fica a sugestão: se, algum dia, você precisar se identificar na gringa, ao invés de dizer “do país de Pelé”, cite outro craque. Diga “sou do Brasil, o país de Luiz Melodia”, o negro gato.

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