O cenário de criminalidade e violência que prevalece em vários pontos do Brasil tem origens diversas. A primeira delas é uma estrutura social extremamente desigual que joga milhões de excluídos em hábitats urbanos inadequados. No entanto, após o déficit social, talvez uma das causas mais importantes seja o quadro de impunidade. Impunidade é a incapacidade de um sistema social para punir os desvios sociais previamente tipificados. Em palavras mais simples, ela pode se resumir na impossibilidade de aplicar a lei para sancionar os culpados, de forma a inibir a repetição desses comportamentos. A impunidade no Brasil é como uma hidra de múltiplos tentáculos. Alguns deles são curtos e aparentemente inócuos, como as anistias periódicas para multas de trânsito que deixam aqueles que já as pagaram com a sensação de ter jogado fora seu dinheiro. Outros são mais compridos, como os desembargadores que mandam prender um guarda municipal por ter multado o carro do filho como se fosse o carro de um cidadão qualquer. Outros tentáculos, ainda, são de longo alcance, como os criminosos que escapam tranqüilamente das cadeias após comprar sua liberdade, as redes do crime organizado com cabeças conhecidas que raramente acabam atrás das grades ou as pessoas de duvidosa reputação que se candidatam a cargos públicos justamente para ganhar imunidade. Há, todavia, raízes mais longínquas, como o pacto implícito cristalizado na anistia que impede de fato não apenas punir, mas também investigar as violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura militar. Nada exemplifica melhor a impotência na aplicação da lei do que a noção de “leis que pegam” e “leis que não pegam”, como se o arcabouço legal no Brasil fosse um cardápio do qual fosse possível escolher o que mais convém. As poucas pesquisas que existem sobre o tema mostram que nossa taxa de esclarecimento de crimes é muito baixa, mesmo para os crimes mais graves. Inclusive crimes de grande repercussão acabam sem punição ou condenando apenas o acusado mais notório. Uma polícia sobrecarregada e deficientemente treinada e remunerada, uma justiça morosa e atrelada a procedimentos extremamente lentos e burocráticos, e a incapacidade do estado para proteger o alto número de testemunhas ameaçadas não contribuem para melhorar essas taxas. Muitos crimes extinguem sua punibilidade pela simples prescrição e não raro os advogados usam os recursos processuais para garantir que o prazo de prescrição chegue antes do que a data do julgamento dos seus clientes. Assim, muitas acusações nunca são esclarecidas, apenas esquecidas, em ocasiões após processos que consumiram anos e inúmeros recursos do sistema de justiça criminal em vão. Os advogados não podem ser culpados porque não fazem outra coisa que cumprir sua obrigação de defender o cliente da maneira mais favorável; é preciso mudar a lei processual e acelerar o funcionamento da justiça. Paralelamente à leniência com muitos criminosos, o estado brasileiro comete numerosas violações -torturas, execuções sumárias e condições desumanas de confinamento- contra a minoria dos casos que acaba sendo condenada pelo sistema de justiça criminal, especialmente contra os menos favorecidos. Como um pai que agisse de forma colérica e brutal com alguns dos seus filhos, em alguns momentos, e fosse completamente omisso com os demais a maior parte do tempo. A impunidade é como um câncer que se instala no corpo social e vai avançando pouco a pouco. As vítimas dos crimes passam a não denunciar porque não acreditam que a denúncia vá trazer nada além de colocar elas num risco ainda maior. Poucas situações são mais tristes do que ouvir da família de um assassinado que é melhor “não mexer com o que aconteceu” para não piorar as coisas. Os autores dos crimes aprendem rápido que podem repeti-los porque a probabilidade de ser condenados é pequena. Deixam, inclusive, marcas dos seus feitos ou se gabam deles, na certeza de que nada lhes acontecerá. A descrença no sistema de justiça criminal desmobiliza a sociedade, inclusive os próprios membros do aparelho de justiça criminal, estimula o medo e o silêncio, e provoca um apoio crescente às ações ilegais e àqueles que decidem tomar a justiça nas próprias mãos. Para tentar curar esse câncer é preciso se submeter a uma quimioterapia que consiga, entre outras coisas, fortalecer o Ministério Público e o seu trabalho conjunto com a polícia, proteger as testemunhas numa escala muito superior à atual e investir na polícia técnica para poder conseguir provas. Mas não basta a participação do sistema de justiça criminal. É necessário também que haja uma vontade política de aceitar os custos da luta contra o crime organizado e uma mobilização social para, por exemplo, não eleger candidatos identificados com a corrupção.

Ignacio Cano – Sociólogo