Recentemente viralizou um vídeo de uma entrevista com Lian Gaia, atriz e performer indígena, em que ela problematiza o fato de ser constantemente questionada sobre a autenticidade de sua identidade indígena. A razão? Ela foge dos estereótipos deixados como legado pelo colonialismo.
A verdade é que corpos racializados – indígenas, negros e imigrantes – não têm permissão para ocupar todos os espaços nem para possuir certos bens de consumo exclusivos de uma classe específica que, geralmente (e não por acaso), se confunde com os herdeiros do colonialismo.
Quando se questiona se uma pessoa indígena pode possuir um iPhone, ou quando Matteo Salvini (líder do partido italiano de extrema-direita Lega) desdenha dos refugiados africanos que chegam à Itália com celulares, está implícita uma noção racista e classista de que certos grupos não merecem ou não devem ter acesso a essas tecnologias. Esta mentalidade não é apenas um resquício do passado colonial, mas uma expressão viva do racismo e da desigualdade que persistem nas sociedades capitalistas contemporâneas.
A frase que muitas vezes escutamos “tão pobrezinho ele não é, pois tem um celular que custa X”, é, entre outras coisas, uma ferramenta insidiosa de manutenção do status quo, um artifício retórico empregado para distorcer a realidade e deslegitimar a luta das populações marginalizadas. Esta perspectiva ignora a complexidade e a profundidade da pobreza, transformando a posse de bens de consumo básicos em uma desculpa para negar a existência de privações mais severas e, infelizmente, comuns.
No cenário urbano, por exemplo, é fácil encontrar críticas aos moradores de favelas que possuem televisores ou celulares, como se a posse desses itens fosse prova irrefutável de que não sofrem privações. Essa visão míope e reducionista desconsidera que a pobreza é uma condição complexa. A aquisição de um telefone celular pode ser muito bem uma necessidade básica para a comunicação e acesso a oportunidades de trabalho, não um luxo. Da mesma forma, uma televisão pode ser uma das poucas formas de lazer e informação disponíveis para essas famílias, e não uma extravagância.
Quando focalizamos em diferenças superficiais, como a posse de bens de consumo, os poderes dominantes desviam a atenção das verdadeiras causas da desigualdade: a concentração de riqueza, a exploração do trabalho e a privação contínua de direitos básicos. Esse discurso esconde as verdadeiras raízes da opressão, reforçando uma falsa narrativa que sugere que a pobreza é uma escolha ou resultado de incompetência pessoal, em vez de um produto de um sistema econômico injusto e excludente.
É ainda preciso também desmascarar a falácia perpetuada pelos antigos colonizadores que se vangloriam dos supostos “avanços civilizacionais” trazidos pelo colonialismo aos povos subjugados. Esta narrativa é um subterfúgio para encobrir a brutalidade e a exploração que caracterizaram o domínio colonial. A verdade nua e crua é que o colonialismo não foi um veículo de progresso, mas uma máquina de opressão destinada a servir os interesses das potências coloniais, à custa das vidas e culturas dos povos colonizados.O acesso à tecnologia, muitas vezes relembrado como símbolo de modernidade e progresso, ainda hoje é negado à maioria das populações racializadas. Uma exclusão não acidental, mas uma continuação das estruturas de poder e dominação estabelecidas pelo colonialismo.
É bom lembrar que a tecnologia, no contexto colonial, não foi disseminada para o benefício das populações nativas, mas para facilitar e maximizar a exploração colonial. As tecnologias introduzidas pelos colonizadores – desde infraestruturas até métodos de produção – eram ferramentas de controle e subjugação, desenhadas para extrair recursos e aumentar a eficiência da exploração econômica. Para os povos colonizados, o acesso a essas tecnologias era – e continua sendo – severamente restrito, mantendo-os em uma posição subordinada na ordem global capitalista. Assim, a exclusão tecnológica atual das populações racializadas é um eco das políticas coloniais, onde a inovação servia para manter a supremacia dos colonizadores e ampliar sua capacidade de exploração. Hoje, a discriminação no acesso à tecnologia não é apenas uma questão de acesso material, mas também de controle sobre o conhecimento e o poder que essa tecnologia representa.
A reação ao uso de tecnologias modernas por povos indígenas, negros e refugiados revela uma série de preconceitos enraizados que buscam manter essas pessoas em um estado de “pureza” artificial e marginalização. Essa visão, que considera o uso de um iPhone como uma contradição à identidade indígena, como falado por Lian Gaia, é uma forma de exotização e paternalismo. Ela reduz os indígenas a estereótipos fixos e lhes nega a capacidade de adaptação.
Este paternalismo se manifesta ao tratar pessoas racializadas como se fossem crianças pequenas, incapazes de se adaptarem às mudanças tecnológicas e sociais ou de tomar decisões racionais. Isso não apenas desumaniza essas populações, mas também ignora as complexas realidades e resistências que elas enfrentam em suas lutas diárias por dignidade e direitos. Essas visões essencialistas e romantizadas dos povos indígenas servem para manter essas comunidades em uma posição de subordinação. Ao mesmo tempo, essa visão paternalista impede a plena integração ou interação dessas populações na sociedade moderna, tratando qualquer uso de tecnologia como uma traição à sua identidade “pura” e tradicional.
A tecnologia, quando monopolizada por elites capitalistas e racistas, se torna uma arma de opressão. A luta pela igualdade deve incluir a democratização do acesso às tecnologias e a remoção das barreiras que impedem os povos racializados de usufruírem plenamente dos avanços tecnológicos. Esta é uma batalha pela verdadeira libertação dos legados do colonialismo e do capitalismo. Identidades são dinâmicas e os povos indígenas, assim como outros grupos marginalizados, têm o direito de utilizar todos os recursos disponíveis para melhorar suas condições de vida e lutar por seus direitos. Seja na favela, no asfalto, na terra ou no mar.