O Paraná possui 399 municípios, 79 deles batizados com nomes indígenas. O próprio nome do estado tem origem guarani, significa rio semelhante ao mar. No entanto, para as lideranças ouvidas pela Agência de Notícias das Favelas (ANF), os indígenas são excluídos das políticas estaduais.
“Muitas cidades, praças, escolas têm nomes indígenas, e tem muitas estátuas representando nossos povos pelo Paraná, mas não há respeito por nós, por nossa cultura, há muitos territórios que passam até fome”, afirma Olivio Jekupé, escritor guarani, residente em Curitiba há 33 anos.
Jovina Rengha Kaingang, vice-presidente do Conselho Nacional das Mulheres Indígenas, sente a mesma exclusão. “Estou na luta pelos povos indígenas no Paraná há mais de 30 anos e vejo poucos avanços no respeito e na construção do governo com inclusão dos nossos povos. O que acontece hoje, e sempre aconteceu, é o governo estadual e as prefeituras falarem sobre nós ou começarem construir planos para nós, sem sequer nos consultar”.
Para indígenas, mas sem eles decidindo
O casal cita diversas ações promovidas pelo poder público estadual e municípios paranaenses ao longo da última década, relacionadas aos povos indígenas, sem a participação dos povos originários. Os dois começam a lembrar de casos, datas e explicam os erros juntos, ambos se completando.
“Um exemplo clássico são os jogos indígenas. Este ano recebemos apenas uma ligação com um pedido de mobilização da comunidade para um ônibus que chegaria aqui de manhã. Ninguém conversou com nós ou outros territórios para montar essa atividade, não sabíamos as modalidades, hora nem local”, conta o casal com tom de indignação.
“Acontecem muitos casos de atividades propostas às comunidades de indígenas sem que conheçam nossas cultura, muitos convites para almoços e jantares com alimentos que as etnias não consomem, ou atividades para as nossas crianças onde elas são separadas dos irmãos que são um pouco maiores. Não é assim que nos comportamos e desfrutamos de lazer”, explica o casal.
“E esses são só os casos mais tranquilos, que a gente consegue até rir, mas se gente for falar sobre as ações de saúde, inclusão nas escolas, combate a fome, a gente começa a chorar demais”, afirmam.
A história de uma ocupação em Piraquara
De acordo com a Secretaria de Estado da Mulher e Igualdade Racial, existem 63 aldeias indígenas no Estado, onde vivem cerca de 26 mil pessoas. A maior parte está em locais sem demarcação legal.
“Quando há gestão compartilhada com o estado, isso acontece meses após a resistência de diversas famílias. Na maioria dos locais, não temos a presença do poder público com saneamento, escolas, saúde. Muitas aldeias mal têm o que comer, pois não há reconhecimento das prefeituras”, explica Eloy Jacinto Kaingang, residente no Território Sagrado Floresta Indígena de Piraquara.
Esse local fica na Região Metropolitana de Curitiba e possui 459 hectares, onde vivem aproximadamente 50 pessoas que ocuparam a terra em agosto de 2021. Indígenas das etnias guarani nhandewa, kaingang, tukana e terena administram o local em uma parceria com o governo estadual.
Vinte e um dias após a ocupação do espaço pelas famílias em Piraquara, ocorreu o acordo com as lideranças, a assinatura de um termo de cooperação entre o Instituto Água e Terra (IAT), vinculado à secretaria de Estado do Desenvolvimento Sustentável (Sedest), e o Instituto e Centro de Formação Etno Bio Diverso Ângelo Kretã (representando as etnias).
Território sagrado e precário
Essa união para administração da área é a primeira experiência de gestão compartilhada entre Estado e povos indígenas do país. Mas, mesmo com quase dois anos de gestão compartilhada, as famílias indígenas sofrem com a escassez de recursos e políticas públicas específicas para seus povos.
“Não há postos de saúde próximos, escolas ou mesmo pontos de ônibus. A maioria das famílias trabalha em locais na cidade e não temos sequer segurança para atravessar a rodovia. Em menos de um ano, apagamos mais de seis incêndios, sem ajuda alguma do Estado. Alguns desses casos foram incêndios criminosos, tentativas de nos tirar daqui. Outros foram acidentes na BR, ou a população queimando lixo. Nós cuidamos e reparamos esse espaço”.
Eloy Jacinto Kaingang relata ainda que, mesmo sendo uma gestão compartilhada, não há o olhar governamental para as questões que afetam os povos indígenas. De acordo com ele, não houve visitas de assistentes sociais ao território. E, apesar de quase todas as famílias trabalharem em comércios ou outros ofícios na região, a maioria conta com a ajuda de doações de movimentos sociais e campanhas solidárias para sobreviver.
A ameaça do marco temporal
Além das preocupações de subsistência, os povos indígenas encaram o medo de perderem suas terras com a eventual aprovação do chamado “marco temporal”. Trata-se da alteração na política de demarcação de terras que, se ocorrer, definirá que só poderá reivindicar direito sobre uma terra o povo indígena que estivesse ocupando-a no momento da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
De acordo com o professor doutor em História Indígena da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Clovis Antonio Brighenti, o “marco temporal” afeta 68% das aldeias no Paraná.
“Só no Paraná, aproximadamente 5,4 mil indígenas poderão ser expulsos de suas terras. A maior parte deles, cerca de 3,4 mil, é da etnia avá-guarani e está no Oeste do Estado, nos municípios de Altônia, Guaíra, Terra Roxa e Laranjeiras do Sul”, contabiliza o pesquisador.
Segundo ele, as etnias guarani, guarani mbya, guarani nhandewa, xetá e kaingang vivem em terras não demarcadas, em cidades do litoral como Paranaguá, Pontal do Paraná, Guaraqueçaba e Antonina. Ele explica que, de acordo com dados de 2022 do IBGE, há 26.559 pessoas que se autodeclaram indígenas no Paraná, o equivalente a 0,25% da população. Mas apenas 11.934 (44,9% do total) vivem em terras oficialmente reconhecidas.
Para indígenas, agronegócio não é tec, nem pop
“Há um mito no Paraná, assim como em todo o Brasil, de que os povos indígenas são pacíficos, vivem isolados e precisam ser adaptados à vida urbana. Essa não é realidade, como na campanha Sangue Indígena: Nenhuma Gota a Mais, no cenário nacional e internacional, uma articulação contra o genocídio indígena, e todas as organizações em atos, composição de conselhos municipais e estaduais de resistência diária”, afirma Clovis Antonio Brighenti.
Outro desafio é o avanço do agronegócio. Cerca de 60% das terras indígenas do Paraná estão dominadas pelo agronegócio segundo o diagnóstico Impactos da Produção de Commodities Agrícolas às Comunidades Avá-Guarani da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá/Paraná, produzido pela comissão pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). O relatório foi apresentado durante os atos contra a aprovação do marco temporal.
“Conseguimos plantar pouca diversidade de alimentos. Não há espaço, mesmo sendo uma floresta, mesmo aqui sendo um território de conservação, o solo está contaminado com agrotóxico. Lutamos por um projeto de agrofloresta e de etnofloresta para nossos povos”, explica Eloy Jacinto Kaingang.
A versão do Estado, que se defende
Denilton Laurindo, coordenador do Grupo de Trabalho Povos e Comunidades Tradicionais do Estado Paraná, afirma que todas as comunidades tradicionais e indígenas do Estado são atendidas em suas localidades, considerando as suas necessidades específicas.
“A segurança alimentar é atendida pela Defesa Civil, estamos organizados sistematicamente nas 63 comunidades em todo estado, com entrega de cestas básicas e medidas de redução da insegurança alimentar das famílias vulneráveis”, garante Denilton.
Segundo ele, a edição dos jogos indígenas de 2023 é um grande orgulho para o governo do Paraná. “Os jogos indígenas acontecem em etapas regionalizantes pela primeira vez. A primeira edição foi em Londrina, a segunda em Paranaguá, a próxima acontece em Maringá, e a última em Jacarezinho. Cada etapa foi realizada junto à comissão indígena local, que participa de toda organização dos jogos, desde a escolha das comunidades até a mobilização de todas as populações locais”, explica o coordenador.
Conforme Denilton Laurindo, a demarcação de terras é competência da União. No caso do Território Sagrado Floresta Indígena de Piraquara, o governo estadual estaria agindo de forma inovadora para o bem-estar das famílias e a preservação da Área de Proteção Ambiental (APA).
“Enquanto a União não contempla essas famílias, a gestão compartilhada do território promove a proteção na mata nativa, promoção e preservação da cultura indígena, além do mapeamento dessa população, o que possibilita a assistência para subsistência desses povos”, afirma Denilton Laurindo.
Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.
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