Melhor capacitação e encarar notificação de violências como um cuidado em saúde é essencial para enfrentar realidade atual - [Imagem: Reprodução / Arquivo Pessoal]

Estudo realizado por pesquisadoras da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), analisou as notificações de violência contra mulheres em áreas rurais do Brasil entre 2011 e 2020, para realizar um levantamento qualitativo e epidemiológico do quadro no país. Os resultados apontam que as principais vítimas são jovens, negras, casadas e com baixa escolaridade, sendo a violência física a mais notificada, seguida pela psicológica e sexual. A pesquisa destaca que a maioria dos casos ocorre dentro de casa, frequentemente cometidos por parceiros, e evidencia o impacto do isolamento e da falta de acesso a serviços nas áreas rurais.

“O problema não é o rural, mas como ele é pensado para as mulheres que lá estão”, afirma Luciene Stochero, nutricionista pós-doutoranda na Fiocruz e primeira autora do artigo publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia. Entre 2011 e 2020, foram mais de 79 mil casos registrados, com crescimento contínuo das notificações. O estudo reforça a necessidade de políticas públicas específicas e maior capacitação de profissionais de saúde para combater o problema e oferecer suporte às vítimas. ”A zona rural tem especificidades como a deficiência de transporte público e, se tem, não é garantia de dinheiro para utilizá-lo”, continua Luciene. 

Luciene Stochero – [Imagem: Reprodução / Arquivo pessoal]

“Em entrevistas com as mulheres [da zona rural], muitas não percebiam que certa coisa era uma situação de violência, como a autonomia financeira delas”, atenta.

Os dados revelam que 77,6% das notificações referem-se a violência física, enquanto 36,5% correspondem à violência psicológica e 6,2% à violência sexual. As vítimas, em sua maioria, têm entre 18 e 39 anos, são negras ou pardas, e possuem baixa escolaridade. A residência desponta como o principal local das agressões, reforçando a vulnerabilidade dessas mulheres em um ambiente que deveria ser de proteção. Além disso, os agressores são, em sua maioria, os próprios parceiros ou ex-parceiros, revelando a dinâmica de controle e poder que permeia as relações interpessoais no contexto rural.

Subnotificação e isolamento

As notificações cresceram de forma significativa ao longo da década analisada, o que reflete tanto o agravamento do problema quanto uma possível melhora na vigilância e no registro de casos. Apesar disso, a subnotificação é um grande desafio, com estimativas alarmantes de que até 98,5% dos casos de violência psicológica contra mulheres não chegam a ser registrados. Essa invisibilidade, somada às barreiras geográficas, sociais e culturais das áreas rurais, torna essencial o fortalecimento da rede de apoio às vítimas e a ampliação de serviços especializados, como delegacias da mulher e centros de acolhimento.

“Existem iniciativas feministas nas cidades, mas precisamos trazer mais visibilidade”, explica a pesquisadora. “Se chegou no sistema, é uma violência grave, então se ele é falho, tem outras pessoas sendo atingidas como filhos e outros integrantes do núcleo familiar”, alerta.

Essa invisibilidade deve-se a diversos fatores, como o medo de represálias, a vergonha e o estigma associado à exposição de situações de violência. Além disso, muitas mulheres desconhecem os canais de denúncia, têm receio de usá-los, ou dificuldade de acesso a serviços especializados, o que reforça o silêncio e perpetua o ciclo de abuso.

O isolamento geográfico característico do meio rural agrava ainda mais o problema. A distância das áreas urbanas, onde estão concentrados os serviços de saúde, segurança pública e assistência social, limita as possibilidades de apoio às mulheres em situação de violência. A falta de transporte público e a dependência econômica das atividades agrícolas tornam difícil para muitas mulheres saírem de seus contextos de opressão. Esse isolamento também reduz as redes de apoio comunitárias, deixando as vítimas sem alternativas para buscar ajuda ou denunciar seus agressores.

Nos municípios menores, faltam lugares especializados, os agentes de saúde que vão até as casas são muito importantes nesse contexto, por isso precisamos cada vez mais melhorar a capacitação dos profissionais para melhor comunicação com essas mulheres”, detalha a nutricionista. “Trabalhar com violência não é simples. Se a pergunta for muito direta, essa pessoa pode nunca mais voltar. Por isso, precisa-se de uma visão intersetorial com assistência social, saúde e segurança pública”, continua. 

Dinâmica de poder no rural

A dinâmica de poder presente nas relações interpessoais no campo permite que, muitas vezes, a violência comece de forma sutil, com comportamentos de controle e ciúmes excessivos, evoluindo para agressões físicas e psicológicas recorrentes. Essa escalada dificulta o reconhecimento da violência pelas próprias vítimas, que frequentemente associam a agressão a questões culturais ou religiosas. Nesse cenário, é fundamental que as políticas públicas de enfrentamento considerem as especificidades do meio rural e promovam ações de conscientização que alcancem essas comunidades isoladas.

Esse estudo visa contribuir para o direcionamento dessas políticas. “É importante que ao verificar que, se há muitos casos de violência contra a mulher em determinado lugar, precisamos de políticas direcionadas a ele. Identificar onde está o foco para agir”, acrescenta Luciene. Além disso, a residência, nesse contexto, em vez de encarada como um espaço de segurança, deve ser vista como o local de agressões, muitas vezes perpetradas por parceiros ou familiares próximos. Esse dado ressalta a dificuldade que as mulheres enfrentam para romper o ciclo de violência, especialmente quando dependem financeiramente ou emocionalmente do agressor. 

Ainda assim, a pesquisadora afirma que os profissionais da saúde “não querem separar o casal. Nós queremos sanar as violências”. Também chama atenção para a atenção que os profissionais devem ter para escutar as vítimas, pois muitos que poderiam ajudar “não ouvem elas ao tentaram falar”. Por isso, ela defende a notificação da violência contra mulher como um cuidado, pois a falta desta pode “tornar essa mulher vítima do feminicídio”.