Justiça seletiva

“Aos amigos, os favores; aos inimigos, a lei.”
(Maquiavel)

Vemos a cada semana nos noticiários e lemos nos jornais fatos que nos deixam mais tristes e temerosos pelos caminhos confusos através dos quais estamos seguindo. Nos últimos dias, Laurita Vaz, a primeira mulher a presidir o Superior Tribunal de Justiça (STJ), negou que uma mulher, mãe de cinco filhos e que está amamentando o bebê mais novo, que tem apenas um mês, pudesse responder a processo em casa. A ré, que é primária, foi presa portando 8,5g de maconha. O argumento empregado em sua decisão foi de que a mulher “não conseguiu provar que seria imprescindível” para as crianças.

Como uma mãe com cinco filhos, amamentando o mais novo com 30 dias de vida pode não ser imprescindível para essas crianças? O Marco Legal da Primeira Infância, Lei nº 13.257, de 08 de Março de 2016, que “cria uma série de programas, serviços e iniciativas voltados à promoção do desenvolvimento integral das crianças, desde o nascimento até os seis anos de idade”, prevê que gestantes e mães de crianças abaixo de 12 anos possam ter suas sentenças revertidas para prisão domiciliar. A decisão proferida pela desembargadora contraria as regras previstas pelo texto legal.

Isso não é novidade, já que a Justiça, que deveria ser cega e igualitária, a cada dia mais torna-se garantidora de direitos para uma certa casta da sociedade, deixando os mais humildes ao sabor da face mais pesada da lei. Que tempos esses de distanciamento da realidade, da eugenia em todos os níveis. A justiça, que de forma igualitária deveria ponderar e decidir imparcialmente, passa a tomar partido e a julgar conforme a vítima e sua posição no tabuleiro social.

Conheço mulheres estudantes, donas de casa, ativistas, trabalhadoras e outras tantas que se reúnem para compartilhar vivências, que estão na vida construindo bases para a família, reafirmando sua força, sua fé, através do seu trabalho, do seu pacto com o conhecimento, com o pertencimento. Mesmo quando tratadas como coadjuvantes, reafirmam diariamente seu compromisso com o futuro, com o trabalho, com seu crescimento pessoal, com o desenvolvimento do mundo a sua volta. São mulheres cultas, competentes, engajadas, parceiras comprometidas com o lar, com o conhecimento, mulheres que lutam para chegar aos bancos escolares, à academia, que contribuem com o seu saber para que haja uma relação justa e igualitária entre os gêneros, colaborando na construção de uma sociedade capaz de abrigar cidadãos felizes. Fico pasma pensando em como uma mulher culta, empoderada, com uma posição e visão privilegiada na sociedade, pode ser mais condescendente com o ex-médico Roger Abdelmassih do que com uma outra mulher que portava 8,5 gramas de maconha.

Condenado a 181 anos de prisão por 48 estupros de 37 pacientes, o ex-médico teve seu pedido de Habeas Corpus aceito pela presidente do Tribunal em julho do ano passado. A medida o liberava para cumprir pena domiciliar. Ao julgar o recurso, a jurista entendeu que houve um erro processual durante a tramitação do pedido. Entendo o estado de saúde em que ele se encontra e o direito que ele tem ao tratamento, já que é portador de doença coronariana grave. É justo, mas não consigo compreender a falta da mesma sensibilidade para julgar uma mulher jovem, mãe de cinco filhos, amamentando o menor de um mês de vida e que foi detida por cometer o crime “hediondo” de portar 8,5 gramas de maconha.

Esta é uma época de justiça seletiva, que permite que a ex-primeira dama do estado possa, por direito, cumprir sua pena em seu apartamento no Leblon, já que tem filhos menores, mas que mantém encarcerada uma mulher pobre e lactante, e permite que todas as outras mães que se encontram na mesma situação jurídica permaneçam detidas.

É difícil ler notícias assim e não sentir uma dor no peito, um sentimento de revolta percorrer o corpo comtra uma justiça que avalia a quem favorecer, como disse Julita Lemgruber: “É inacreditável e perverso. Há alguns meses, um filho de desembargadora foi pego com 180 quilos de maconha. Foi considerado alguém que precisava de tratamento. Dois pesos e duas medidas? A gente se vê por aqui”.

Essa justiça, que deveria ser a justiça que resgata, que possibilitaria mudanças positivas, que igualaria os homens nas suas chances e direitos, a cada dia mais se torna um mecanismo de controle da pobreza e de eugenia social. Pelo Brasil afora, as cadeias estão lotadas de casos iguais, de mães amamentando através das grades das celas, tratadas com desprezo, com descaso, como bicho, como gado. Dias tristes, lamentáveis.