A Copa de 82 foi a primeira a impactar minha percepção.
Com quase 10 anos, tinha acabado de me mudar da Praça da Bandeira para o Larguinho (Praça André Rebouças, Rua Morais e Silva), que garantimos que é Tijuca, mas alguns desconfiam que já é Maracanã.
De qualquer maneira, é uma Tijuca já fronteiriça, roçando em São Cristovão e no Rio Cumprido; uma Tijuca mais Clube do América do que Tijuca Tênis, mas também a Tijuca do Colégio Militar, do Pedro II, do Instituto de Educação, da CEFET e da UERJ (região que costumo chamar de Pentágono da Educação Pública Carioca). Cresci ouvindo, de casa, a torcida do Maracanã e só saía de casa para ir para o CPII quando ouvia o primeiro sinal.
Uma de minhas primeiras lembranças desta nova morada era de estar na sala, com minha mãe, quando a campainha toca e, pela porta de vidro ondulado, avistamos 3 ou 4 pessoas, algumas com a camisa da seleção. Abrimos a porta curiosos. Eram jovens da rua: Gil, Claudia e Luciana, se bem me lembro, que deviam ter entre 15 e 17 anos. Pediam dinheiro de porta em porta, em diversos prédios da vizinhança, para enfeitarem a rua para a Copa. Faziam também pedágio, fechando a rua com cavaletes emprestados de obras.
Da janela da sala, que dava de frente pra rua, via pessoas picotando plástico, prendendo em fitilhos, subindo escadas e amarrando em postes e árvores.
No centro daquele amplo círculo de asfalto da praça André Rebouças, alguém rabiscava um Naranjito, mascote da Copa. E tinha mais um ou outro desenho, não me lembro.
Eu ainda não conhecia quase ninguém e vi toda essa mobilização com os olhos arregalados e sem muito envolvimento, mas acho que um ou dois fitilhos eu ajudei a esticar.
Em frente ao meu prédio, na outra calçada, havia um baleiro. Ali, diariamente, eu comprava a quantidade de chicletes ping-pong que eu conseguia após furtar moedas pela casa e economizar o dindim miúdo e incerto da merenda. O álbum da Copa de 82 tinha essa particularidade: as figurinhas vinham envoltas no chiclete.
Lembro nitidamente da sensação de estar com 2 ou 3 chicletes na boca e, assim que diminuía um pouco o açúcar, eu já trocava e colocava mais 2 ou 3. Foram meses em que abandonei minhas preferidas Sete Belo, Juquinha e o caramelo quadradinho, para focar em preencher o álbum.
A figurinha mais difícil era a do Roberto Dinamite. Não me pergunte por que. Sei que muita gente já tinha o álbum cheio faltando apenas o bendito Dinamite.
Um dia, na barraca do Antonio, o maxilar doendo de mascar ping pong, desenrolei, estupefato, a figura 42. A cabeleira ampla, a pele morena, era ele! Vibrei, emocionado. O Antonio, baleiro (que até hoje trabalha na Morais e Silva, mas agora vendendo Pipoca perto da Petrobrás) parecia sinceramente feliz por mim.
Tinha mais dois moleques da área comigo. Um deles era o Jorginho, irmão da Tita, russo, louro, olhos verdes, troncudo, debochado e risonho. Num gesto inesperado, ele tomou a figurinha da minha mão e saiu em disparada. Corri, louco, agoniado, atrás dele. Atravessou a rua inteira, virou na seguinte, virou novamente em frente ao Colegio Militar e eu, esbaforido, atrás. Ele continuou até virar novamente na minha rua. Meu pulmão jovial arfava, as pernas bambas, eu só não queria perder o Jorginho de vista. Demos a volta inteira no quarteirão. Perto do baleiro consegui alcançar o Jorginho, que ainda hesitou, mas acabou me devolvendo aquela tão aguardada figurinha. A brincadeira do Jorginho custou um rasgo que ia do alto da figurinha até quase a testa do Roberto. Jorginho ria. Eu raivoso, retomava a respiração.
Com Roberto Dinamite finalmente fechei meu álbum ping pong da Copa da Espanha de 1982 (o rasgo quase sumiu com a cola). Devo ter mastigado 786 chicletes, ou mais, para isso, prejudicando o orçamento doméstico e ampliando as cáries.
O fatídico jogo contra a Itália (o 3×2 que me marcou mais que o 7×1) foi meu primeiro choro doloroso de Copa, minha mais potente decepção futebolística. Assisti bem longe da Tijuca, na casa de minha avó, no Conjunto Habitacional João XXIII, em Santa Cruz. Depois do jogo, tomei 2 sacolés olhando desalentado as águas do rio Guandu. Lembro de tias e vizinhos chorando. E cara do Paolo Rossi, carrasco de nosso sonho, ficou estampada por um tempo em minha memória, como um vilão incômodo e bem sucedido.
Nas copas seguintes, 86, 90, 94, não sei se 98 também, acho que sim, a mobilização para decoração da rua Morais e Silva e da Praça André Rebouças foi a minha primeiríssima escola de ativismo, engajamento e trabalho coletivo. A rua foi, de fato uma escola da vida. Desenvolvi ali, acredito, habilidades que posteriormente seriam fundamentais para meu fazer teatral e para o ativismo cultural e político.
E saltamos para hoje: Copa da Rússia de 2018. 36 anos se passaram… No primeiro jogo, ficamos conversando na sala e só assisti os 15 minutos finais. No segundo jogo, abri os olhos, vi que o jogo tinha começado e voltei a dormir. As ruas enfeitadas agora são raras. Ontem, resolvi que assistiria o jogo inteiro. Num dado momento, a bola mal acabava de alcançar o meio campo quando ouvi a vizinhança explodir com o gol que a NET, atrasada, só mostraria segundos depois… No segundo gol, a mesma coisa: o jogador acabou de cruzar, geral no entorno comemorando gol, e a NET, pós-spoiler, mostrando um gol sem surpresa ou impacto…
Tenho pra mim que foi no quarto gol do 7X1 que o meu coração futebolístico necrosou, inviabilizando-se. Agora o que resta é a memória de um outro tempo e a percepção histórica de que um paradigma comportamental se altera diante de meus olhos.
Quem não é mais o mesmo: eu ou a copa? Eu diria que ambos. Falemos mais sobre isso na próxima semana.