Começo esta resenha, e certamente a terminarei, completamente inseguro por tratar de uma grande poetisa e, sobretudo, porque diante da temática “transvestigênere”, não estou preparado. Se o comentário crítico tem função pedagógica, de seleção/indicação daquilo que vale a pena conhecer, devo confessar, humildemente, meu aprendizado diante da potência de Segunda Queda, coletânea de poemas de Ave Terrena Alves, radicada em São Paulo, capital.
Com enorme insegurança, vou tentar expor alguns aspectos do universo de sensações desencadeadas pela poesia que arrebata e escancara o meu, tão nosso despreparo secular para abordar temas urgentes que emergem neste início de terceiro milênio. A primeira lição é: precisamos baixar a bola, as bolas do macho machista branco com nível superior que escreve, soldado do “CIStema”, como lembram os versos “1 pau não ti dá o direito/ de achar que é o juiz da história”. Tenho dificuldades na escolha das palavras. Escrevi “poetisa”, mas pesquisei e descobri que existe um debate a respeito: algumas mulheres preferem poeta, mais dignificante. Devia ter usado poeta, autora? Como somos bobinhos, bebês…
Lembro da passagem teórica que agora cresce em importância na minha mente, na minha frente, como glande assustadora diante da boca reprimida: “A apreciação crítica de tais trabalhos reclama uma reavaliação de nossos critérios de valoração estética. Isso não significa examiná-los com condescendência, mas sim reconhecer a necessidade de problematizar nossos conceitos do que sejam valor estético e eficácia composicional, bem como daquilo que constitua sentido na produção literária”. A citação é de Benito Martinez Rodrigues comentando o romance Capão Pecado, de Ferréz.
Quanto à autora em questão, começo pelo seguinte: adoro o codinome, Ave Terrena, contradição ainda maior porque seguida do singelo Alves. Acho sensacional. Quanto aos aspectos estéticos, algumas tentativas.
Tentativa 1, claudicante: o vocabulário. A poesia de Ave Terrena é abundantemente escrita com variações da língua cotidiana, a oratura, em amplo espectro, das expressões típicas da internet (“hj”, “vc”, “q”, “mto”) ao vocabulário pajubá, inspirado em línguas africanas e indígenas, possibilitando a comunicação cifrada entre travestis e parte da comunidade circunstante. Aprenda: taba (maconha), mapô (mulher), ocó (homem), acue (dinheiro), neca (órgão genital masculino), edi (ânus), alibã (polícia). Adicionei todas essas palavras ao dicionário do Word, adicione você também. Quanto aos vocábulos cortados quase sempre, representam uma vida de mutilações?
Tentativa 2, apalpando: a concisão. “Nossa dor/ em versus curtus”. Compactação é fundamento da poesia, lembram nomões como Ezra Pound, que também nos fala da “fanopeia”, a capacidade de projetar imagens – em Segunda Queda são tantas, e tão fortes, como em “oásis de frutas fibrosas/ flecha furando as folhas”, ou “segunda queda/ chão já pertenço/ segura garrafa/ quebra/ pra si proteger na rua a noit”.
Tentativa 3, percebendo: as referências. Anderson Herzer, Erika Hilton, Linn da Quebrada, Neon Cunha. Não conhece os nomes, as trajetórias? Contextualizo uma que, confesso, não conhecia; procure as outras; será muito didático; te atualiza, gato; e assim saberá o quanto mudaram, mudam, mudarão a História. Anderson Herzer escreveu A queda para o alto, do qual trechinho virou epígrafe de A segunda queda, título que homenageia/dialoga com o livro, ícone da cultura trans. Herzer viveu duríssima vida, cometeu suicídio aos 20 anos, e sua obra autobiográfica, pra lá de impactante, inspirou o filme Vera, de Sérgio Toledo. E mais não conto, até porque venho conhecendo a obra. Ainda quanto às referências de Segunda Queda: a cada evocação, mensagens de resistência, de que irmanadas são mais fortes, menos manada, como escrito em um dos poemas de que mais gostei.
Tentativa 4, constatando: a beleza da poesia suplanta a dor. Apesar da angústia de certos versos, da incerteza, das camas frias onde se pode atuar, encenar o sexo muito convincentemente, mediante “paga propícia”, a pujança (clichê para comentário sobre poesia) é autêntica. Li o livro diversas vezes, e o encantamento foi crescente, penetrante.
Tentativa 5, de encerramento: sensação de incompletude. Vou encerrando a resenha incomodado, provavelmente não fui capaz de evidenciar a importância e a qualidade poética de Segunda Queda. Se isso aconteceu, talvez a resenha ainda valha pelo avesso: explicita a minha, tão nossa secular incapacidade, desconhecimento, preconceito, marginalização. Explicita mais ainda que as boas intenções – se é que são boas – são insuficientes para construção de uma crítica literária antenada com o mundo plural e as pessoas que o fazem.
Admitamos, tiozão: temos muito a evoluir como humanos seres privilegiados, como comentadores de arte, como cidadãs e cidadãos que se pretendem democráticos.
Será que, em uma vida, dá tempo?
Ouça no Spotify da Agência de Notícias das Favelas (ANF) quatro poemas do livro Segunda Queda.
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